Chuva agostina
Diário da Manhã
Publicado em 24 de agosto de 2016 às 02:49 | Atualizado há 9 anosAntes de sair de casa, percorri os olhos pela extensão do horizonte escurecido. Os quatro lados fechados. Chuva nesse tempo? Calculei, ainda sem acreditar, a quantidade de chuva por vir. O sol estava espremido por trás das nuvens escuro-azuladas. Pegando a estrada, subindo a serra de Taquaral, percebo uns pinguinhos cristalinos salpicarem desmanchando a poeira no visor do capacete. No cume da serra, os pingos se agraúdam, exigindo uma ligeira parada para pôr a roupa de chuva.
Chuva inesperada. Além do fenômeno em si, provando que a natureza é soberana, dona do próprio nariz, porque ontem deu no jornal que só choveria em outubro, o bom de uma chuva assim são as opiniões, lembranças, puxar papo com quem a gente nunca falou. Chuva vira assunto. Para os de mira monetária, tomara que o leite baixe o preço. Aos nostálgicos, pousando os olhos na bica da calha, dizem nunca se lembrar de uma chuva assim no mês de agosto. Muitos não falam, apenas comem e tomam chocolate quente, deslizando os dedos no visor no celular, se colocando, eventualmente, a olharem pela janela para ver a água cair. Antes do casual e agradável bom dia, a mulher de lenço, num sorriso, com uma sacolinha de pão, passa pelos outros repetindo: “Ô, chuva boa!” Contra a correnteza da enxurrada cheia de folhas, dois meninos, sem pressa alguma de chegarem em suas casas, caminham chutando a água. Um homem sobre o cavalo cruza a esquina, encolhidinho por causa do frio, olha para o céu e agradece em prece silenciosa. Com o correr dos minutos, a chuva aumenta. Goteiras se revelam aqui e ali, mas nada que uma vasilha plástica não resolva. Um joão-de-barro, mesmo arrepiado e molhado, com a casa pela metade, canta solene no galho da árvore na praça em frente. A graça pluvial, tão plural, igualmente distribuída entre gentes e bichos, é de arrancar suspiros.
Observando tais movimentações, não me contive e quebrei o silencio para falar sobre sopa de macarrão. Afinal, num tempo como aquele cairia muito bem, tanto no almoço quanto na janta, assim como na volta do dia. Salivando, comecei a tecer a descrição do prato: fumegante, com batata picada grande, muito caldo, pimenta do reino e…
Um homem chega e para sob a marquise sacudindo os braços para se enxugar. A camisa branca deixa vazar a tonalidade avermelhada da pele. Não cumprimentou os outros que por ali também se abrigavam. Tiritava de frio. Estava raivoso, muito mais quando pegou a carteira de cigarros no bolso da calça, tirou um para acender e não conseguiu. Esmagou tudo entre os dedos e jogou longe. Ficamos a observá-lo, suspendendo a descrição da sopa. Ele apertava uma pasta, cheia de xerox de documentos, no sovaco. Agitava as pernas, esticava o braço desocupado. Tirou a pasta debaixo de um braço, sacudiu-a para tirar a água, pondo-a embaixo do outro. Apontando para o céu, ergueu a voz e disse palavras nada agradáveis, maldizendo a chuva: “…Já chega! Que diabo de chuvarada!” As pessoas próximas se afastaram. Eu esqueci de terminar o que vinha falando sobre sopa, tampouco fui lembrado pelos amigos de fazê-lo. Sem paciência de aguardar o estio, não falou com ninguém. De repente, saiu correndo, ainda vituperando o tempo, tentando inutilmente pular as poças de água beirando o asfalto. “Ô, Pai, perdoa ele!”, ouvi uma senhorinha dizer baixinho. Num descuido de movimento, o homem escorreu e plainou em uma das poças. “Bem feito”, um gritou. “É mesmo! Vai mais, babaca!”, outro emendou. A maioria dos que estavam dentro e fora da padaria se esbaldava, menos a senhorinha que pedira perdão por ele. E foi ela mesma quem fez frente para uns gatos pingados irem oferecer-lhe ajuda, ver se estava tudo bem com o homem. Pena não ter aceito. Nem o tombo feio o fez minguar o teor gravoso do palavreado. Mandando todo mundo para aquele lugar, se levantou e, mancando, dobrou a esquina tentando correr.
Eu, sendo um dos que tentaram auxiliá-lo, voltei absorto. Tristemente confirmei estar diante da espécie mais ingrata de ser vivo, não tanto pela má resposta frente a presteza oferecida, muito mais pelo antes, a revolta com a chuva. A salvação do dia foi a senhorinha de espírito altruísta, que foi embora ovacionada.
E a sopa? Ficará para outra hora, quando chover de novo.