Opinião

Coisa chata

Redação DM

Publicado em 13 de janeiro de 2018 às 00:01 | Atualizado há 7 anos

O úni­co si­nal de vi­da flu­ía go­ta-a-go­ta do so­lu­ço da tor­nei­ra. As es­tre­las es­ta­vam tão qui­e­tas, o céu es­ta­va com o as­pec­to de um ma­pa si­de­ral. As vo­zes de in­se­tos no­tur­nos ti­nham si­do des­li­ga­das, o la­drar dos cã­es, o fre­ne­si dos ga­tos no te­lha­do, a co­ru­ja com o seu pi­ar som­brio e o voo dis­so­lu­to do mor­ce­go – si­len­ci­a­dos – pe­lo go­te­jar da tor­nei­ra.

Go­ta-a-go­ta: coi­sa cha­ta, coi­sa cha­ta, coi­sa cha­ta… E o cor­po ser­pen­teia na ca­ma, e a noi­te é lon­ga. Pin­ga tor­nei­ra! Pin­ga. Por­que pin­go tam­bém. Pin­go eu de in­so­ni­o­sa ago­nia  no afã des­se mal­di­to go­te­jar.

Tan­ta gra­ça tem. Tan­ta gra­ça a in­va­dir a ca­sa, es­sa coi­sa cha­ta, coi­sa cha­ta… Vou abrir a ja­ne­la e sal­tar por ela – eu ju­ro –, mas, que sor­te a mi­nha – há um ba­ru­lho na es­ca­da – cor­ro pa­ra olhar e – que pe­na: é ape­nas a lua imó­vel a re­lu­zir nos me­tais da co­zi­nha… ‘Ape­nas a lua imó­vel a re­lu­zir nos me­tais da co­zi­nha’ – eu po­de­ria te­cer ver­sos com es­sas pa­la­vras se a tor­nei­ra tam­bém não es­ti­ves­se na co­zi­nha.

Coi­sa cha­ta, coi­sa cha­ta… Um la­men­to na­da im­per­cep­tí­vel de al­guém in­ca­paz de se con­ter – lín­gua de tra­po –  ig­nó­bil – de­via se cha­mar gros­sei­ra e não tor­nei­ra… Uma la­da­i­nha me­tó­di­ca – fun­do mu­si­cal da his­tó­ria de uma pes­soa que aca­ba­ra de ser ven­ci­da nu­ma lu­ta – a bo­ca da pla­teia se mo­ve com a so­fre­gui­dão de gri­tos, mas não há som; o cor­po es­par­ra­ma­do no chão e o úni­co ba­ru­lho que o per­de­dor es­cu­ta é o das go­tas de su­or ca­in­do uma-após-a-ou­tra… Uma-após-a-ou­tra na ma­ci­ez da lo­na.

Oh!, ve­nham to­dos. Há uma gran­de fes­ta aqui es­ta noi­te. Tra­gam as cri­an­ças com seus trom­bo­nes, e as que es­tão gri­pa­das pa­ra as­so­a­rem os seus na­ri­zes com es­tron­do, en­quan­to so­bem e des­cem as es­ca­das.

Que ve­nha meia dú­zia de bis­pos com su­as cam­pa­i­nhas – que ve­nha a igre­ja com o si­no da ho­ra de­zoi­to. Que se ache­guem os car­ros de pro­pa­gan­da  en­to­an­do mu­si­qui­nhas de que­re­la – Ve­nham, ve­nham to­dos.

Bem-vin­das as tor­ci­das de fu­te­bol com su­as bu­zi­nas e pa­la­vrões, bem-vin­dos sol­da­dos ca­be­ças de pa­pel, Gul­li­ver com to­dos os seus ya­ho­os, o Flau­tis­ta de Ha­me­lin e as po­bres ‘pu­tas tris­tes’ de Ga­bri­el Gar­cia, sim, ve­nham. Ve­nham!

On­de es­tão os gan­sos, as ma­ri­ta­cas e os por­cos? Tra­gam to­dos – to­dos são bem-vin­dos. Tra­gam quan­tas doi­di­va­nas en­con­tra­rem pe­lo ca­mi­nho… Ve­nham, ve­nham! Tra­gam tam­bém fi­ló­so­fos de bo­te­quim e can­to­res ser­ta­ne­jos  con­tem­po­râ­ne­os.  Não es­que­çam os li­vros de es­ca­to­lo­gia, ci­ên­cia quân­ti­ca e ge­o­me­tria es­pa­cial, tra­gam to­dos eles pa­ra se­rem li­dos em voz al­ta.

Tra­gam, por Cris­to,  a bom­ba de Hi­ros­hi­ma com o seu ‘bu­u­u­um’ es­pe­ta­cu­lar, a ex­plo­são do Big Bang… Tra­gam o apo­ca­lip­se… Qual­quer coi­sa. Sim, qual­quer coi­sa que aba­fe o in­su­por­tá­vel hu­mor des­sa coi­sa cha­ta, coi­sa cha­ta, coi­sa cha­ta…

 

(Cla­ra Dawn, ro­man­cis­ta e pro­du­to­ra de con­te­ú­do do Por­tal Raí­zes – por­tal­rai­zes.com)

 


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