Com quantos graus se queima um museu?
Diário da Manhã
Publicado em 5 de setembro de 2018 às 00:19 | Atualizado há 7 anos
O Museu Nacional pegou fogo. Com ele, pegaram fogo milhares de obras. E também queimaram muitos sonhos – dentre eles o meu. Esse ano, comecei a preparar um projeto de doutorado que versava, entre outras coisas, sobra o início da história natural no Brasil. O acervo do Museu Nacional era, portanto, uma das minhas principais fontes de pesquisa porque era o principal do gênero no país. Mas ele se queimou. Com ele, meu sonho de doutoramento.
O Museu abrigava coleções importantes de etnologia, através dela poderíamos conhecer as nossas origens indígenas. Poderíamos tentar nos reabilitar como povo do massacre que vêm sendo cometido desde 1500. A coleção do museu poderia ser capaz de gerar debates e reflexões sobre os indígenas e nossa história. Mas ele se queimou. Com ele, o projeto “democracia racial” que nunca se concretizou.
O espaço de lazer associado a conhecimento e cultura também foi incinerado. Com ele, milhares de pessoas que o visitavam anualmente perderam a possibilidade de se fazer cumprir o dispositivo constitucional (nos Artigos 6º se estabelece o lazer como direito social e no mesmo ocorre no Artigo 23/§ 5 com a cultura). Nove programas de pós-graduação se queimaram junto com o museu. Quantos sonhos eles representavam? Quantas inovações científicas e/ou tecnológicas arderam em chamas? Queimou-se o acervo de egiptologia, de antropologia biológica, de geologia, de zoologia – todos de extrema relevância. Quantas possibilidades de pesquisa foram utilizadas como combustível?
Em 1953, o americano Ray Bradbury publicou a distopia “Fahrenheit 451”, no qual livros são queimados por um governo totalitário (o título do livro faz referência à temperatura da queima do papel). A cremação era estimulada por um apego frívolo à vida hedonista, que entraria em choque com o saber dos livros, bem como o medo do conhecimento que gera questionamentos ao poder instituído.
É, ao que parece, no Brasil, a vida imita a arte. Ainda mais se percebermos uma série de outros acontecimentos: o incêndio dos Museus da Língua Portuguesa (2015), da PUC de Minas Gerais (2013), o fechamento de museus como o do Ipiranga, o aumento das tarifas aeroportuárias sobre obras de arte aprovada e sancionada esse ano etc. Estão queimando (literalmente ou não) o acesso do povo brasileiro à arte, à cultura, ao lazer e ao conhecimento.
Mas quem está por trás das chamas? A resposta é fácil: o governo federal, que desde 2014 não repassa as verbas necessárias para a manutenção destes espaços. De lá para cá, as verbas vêm minguando até chegar nos 54 mil enviados em 2018 . Este valor representa apenas 10% do mínimo necessário para manter o Museu em funcionamento. Em resumo, a falta de cuidado com a nossa história e do nosso conhecimento é a responsável pela incineração dela mesma.
É bom ressaltar que esse descompromisso com o saber e o conhecimento não é um “privilégio” do vampiresco governo Temer. Na administração da presidenta Dilma já vinha se efetuando cortes no orçamento destinado à educação que acabaram levando à situação de precariedade em espaços culturais como os Museus. Digo isso para deixar claro que este descaso não é uma questão partidária, mas sim uma política do Estado brasileiro que promoveu o sucateamento do lazer, da cultura e do conhecimento. Em suma, o sucateamento da educação.
Essa percepção não é nova, ela já aparece em Darcy Ribeiro, antropólogo e um dos grandes precursores da educação indígena, que afirmou num congresso da SPBC em 1977 o seguinte: “A crise da Educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Vivemos num país que seu bem mais preciso é constantemente condenado à falência. No Brasil, estudantes e alunos são colocados em xeque frente à violência das estruturas do Estado. Perceba os baixos salários dos professores, a terceirização da educação (ProUni do governo Lula) através de instituições privadas de baixíssima qualidade, o projeto Escola sem Partido, a militarização das escolas, entre outros.
Inclusive, estes dois últimos são faces de uma mesma moeda, o silenciamento dos envolvidos na educação. Ambos atentam contra a diversidade de conhecimentos e saberes fundamentais para a educação. Enquanto a Escola sem partido cala os professores, as escolas militares emudecem os estudantes que passam a ser submetidos ao autoritarismo e a repressão militar.
Como educador sei que a educação deve ser baseada num tripé de questionamento-respeito-dedicação. No entanto, é justamente o oposto que vêm se impondo: questionamento é considerado perigoso, portanto vamos proibir professores e alunos de dialogar livremente; respeito mútuo é substituído por hierarquização, autoritarismo e violência; e, por fim, a dedicação é jogada para escanteio através de um processo “decorebas” e avaliações sem sentido para a vida e o desenvolvimento da capacidade intelectual dos estudantes.
O mais triste é perceber que o projeto político de todos os candidatos à presidência ou não versam sobre estas questões ou a tratam como mero gastos (não como investimento). Apenas o programa de governo do PT e de Marina Silva apontam apoio a museus, por exemplo.
O nosso futuro não é sombrio, afinal era será iluminado pelas chamas dos Museus, Centro Culturais, Escolas de arte etc. Só nos resta uma única pergunta para escrever a distopia do Brasil: com quantos graus se queima um museu?
(Victor Creti Bruzadelli, professor mestre em História)