Comer na panela
Diário da Manhã
Publicado em 27 de janeiro de 2017 às 00:55 | Atualizado há 8 anos
Quando o casamento foi marcado, não dava para imaginar que justamente naquele sábado invernaria. Tudo estava ajeitadinho para a festa na roça, mas amanheceu chovendo. Céu escurecido, garoa e cheiro de terra molhada. Nem sempre Santo Antônio e São Pedro chegam a um acordo. Coisas de janeiro, talvez. Ninguém duvidava que Luciane e Álvaro haviam comido na panela. O que causava expectativa era um detalhe: qual havia sido o tamanho da panela?
O casamento na roça provavelmente é uma das tradições mais bonitas da nossa cultura. Mais do que um resgate das nossas origens rurais, a união no campo conecta os convidados de uma maneira especial. Todos ali são iguais. A hierarquia desaparece um pouco para aflorar a doce hospitalidade goiana. A chuva parecia favorecer essa proximidade.
O mundaréu de carros ia se esparramando pelo pasto. O movimento de gente somava-se às gotinhas de água que acariciavam a penugem da pastagem para formar um piso escorregadio. As mulheres caminhavam com a redobrada prudência que o salto exige. Os homens tentavam, na medida do viável, proteger o cabelo de suas damas. Ou simplesmente cuidavam de si. Coisas da natureza de cada um.
A grande varanda da sede da fazenda havia sido ampliada com diversas tendas, que protegiam as mesas da garoa. Outras coberturas estavam sendo erguidas no quintal, próximas às mangueiras, onde o cheiro de terra molhada era ofuscado pelo churrasco que estalava as brasas do carvão. Todos procuravam um cantinho para se proteger da chuva. A união que o casamento prometia já havia deixado todos bem próximos.
O noivo trazia no rosto um sorriso acolhedor, que exalava felicidade. A noiva, atenciosa, procurava saber se todos estavam confortáveis. Estava preocupada com a chuva. Não deveria. A atmosfera não poderia ser melhor. Ela levava a situação com bom humor: “Se soubesse da chuva, teria programado uma pamonhada, né?”
O padre Daniel, pároco de Paraúna, faria a celebração de Luciane e Álvaro. A benção católica emprestava à tradição sua mais legítima expressão. Sob vários aspectos, havia naquele casamento um simbolismo muito bonito. A presença inesperada da chuva exalava o aroma de vida nova ao aproximar as famílias sob a mesma proteção – divina e literal – ao ritmo da agradável melodia de água que escorre.
As famílias dos noivos são tradicionalmente vinculadas à vida simples da fazenda. Os avós de ambos os noivos haviam se casado de maneira semelhante. Era um outro contexto. Antes, os convidados atravessavam longas distancias a pé, a cavalo ou por meio de carroça. O pouso se dava na própria festa – ou simplesmente emendavam o farranjo noite adentro. Hoje, com carros à disposição, não há mais necessidade de se dormir na fazenda – o que não impede a festa de varar a madrugada.
Os convidados iam beliscando carne assada com mandioca, guariroba e feijão tropeiro. O almoço de roça, naqueles panelões, ia ganhando forma ao longo da manhã. O cheirinho agradável de feijão novo cozido. O torresmo esturricando. A água do arroz secando aos poucos. A lenha temperando a comida com fumaça. Se há algo mais próximo de um banquete divino, não conheço.
Os docinhos do casamento faziam justiça à tradição. Cristalizados, cidras, cocadinhas assadas e bolinhos. Bem caipira mesmo. A sobremesa ainda traria pudim de leite, ambrosia e toda sorte de doces em caldas e compotas. Tudo tão acolhedor como a casa da gente. Mais pessoas deveriam se casar assim. Não pela comida. Não pela festa. Nem mesmo pelo respeito às tradições. Matrimônios na fazenda são especiais. Permitem que a gente compartilhe a união de família em comunhão com a natureza.
A chuva já havia cessado na hora do almoço. Embora o céu continuasse fechado, a garoa havia sido vencida. Na queda de braço celestial, Santo Antônio levou a melhor. No final de contas, ninguém mais se preocupava com o tamanho da panela na qual Luciane e Álvaro haviam comido. O que importava de verdade era o tempero – por alguma razão palavra tão parecida com tempo. E nada batia aquela chuvinha acolhedora.
(Victor Hugo Lopes, jornalista)