Como os funcionários públicos, que deveriam ser pro-governo,
Redação DM
Publicado em 14 de junho de 2016 às 02:34 | Atualizado há 9 anos
Um editorial do Estadão diz que “o Governo” terá de explicar para 11 milhões de brasileiros desempregados por que os servidores públicos, já muito protegidos, merecem tratamento tão diferenciado (aumentos autorizados por Temer e Congresso) com dinheiro do contribuinte.
Este artigo é uma tentativa de entender as complexas relações “psicológicas” do funcionalismo público com os governos – até para responder essa provocação do Estadão.
Uma das coisas que me chamam a atenção é o fato de Brasília ser o “ninho do funcionalismo público” e ser, ao mesmo tempo, hoje, um dos lugares mais virulentos contra o PT e contra a Dilma, que, como todos sabem, têm o Estado, o estatismo, o funcionalismo público, no cerne de sua ideologia e de suas “massas-de-manobra” (já Lênin dizia que as revoluções não são capitaneadas pelo operariado / campesinato, mas por uma burguesia mais esclarecida, inclusive funcionários públicos). Na falta de um proletariado industrial quantitativo e qualitativo, quem domina os rumos do PT, hoje e sempre, foi o funcionalismo público. Por que este funcionalismo, inclusive os médicos, classe da qual faço parte, se voltou contra o seu mantenedor?
Emmanuel Todd é um dos mais brilhantes, originais, e polêmicos cientistas políticos franceses, autor de várias obras sobre situações de “crise”, p.ex., “A decomposição do sistema americano”, “A decomposição do sistema soviético” (ele profetizou a Queda do Muro ainda em 1976 ), “Ensaio sobre a Estagnação das Sociedades Desenvolvidas”, “Filosofia Psiquiátrica da História”. Nestas obras, na esteira de Lênin, Todd mostra, com dados, que é a pequena burguesia que impulsiona as revoluções. Assistimos isso no Brasil, num momento em que nem o operariado estava revoltado (re-conduziu Dilma ao poder em 2014) e nem a alta burguesia estava indignada (só depois que o “caldo entornou” de vez é que banqueiros e industriais adotaram o “fora Dilma”).
Tanto a pobreza quanto a alta burguesia estavam “mamando bem” nas tetas governamentais. O problema é que a pequena burguesia começou a chiar, sobretudo a pequena burguesia funcionária pública. Mas, por que se deu isso?
Vamos pegar como exemplo o de um médico funcionário público. Dilma começou a “atacá-lo”: primeiro criou uma lei pela qual os salários dos médicos ficam relativamente estagnados enquanto o resto da equipe de saúde iria continuar ganhando (disse que fez isso para melhorar a “eficiência dos hospitais públicos”, uma vez que vinha sendo cobrada pela população – mais alfabetizada, mais ligada na internet – e não obtinha resultados por parte dos médicos). Depois anulou a lei que tentava regulamentar a profissão médica (disse que foi para salvar o SUS, pois neste profissionais não-médicos podem exercer a medicina). Depois ,para “finalizar”, trouxe, de Cuba, profissionais que não tinham formação médica, para exercerem a profissão em “igualdade de condições” com os médicos brasileiros (disse que fez isso porque a “alta burguesia médica” não queria ir para o interior). Certamente Dilma, ao atacar os médicos, atacou uma parcela da casta dos funcionários públicos (só 28% dos médicos não têm vinculo público).
Dilma começou a cobrar obsessivamente (ela é obsessiva mesmo) por serviços médicos de qualidade, isso porque o próprio povo cobrava e também porque o Governo foi centralizando a saúde só no Estado, diminuindo e precarizando a saúde prestada pela iniciativa privada. O povo, mais “letrado e mais antenado”, começou a cobrar muito. Se fosse Lula, que é mais “light” e menos obsessivo, teria visto o vespeiro que iria mexer (médicos, funcionários públicos, contra ele) e deixado de lado.Mas Dilma,com uma psicopatologia rígida e obsessiva, resolveu “apertar o parafuso” em cima do médico-funcionário-público. Este se revoltou, e inclusive começou a perder dinheiro: 1- tinha concorrentes cubanos em seus empregos . 2- estava com salário congelado. 3- estava perdendo postos de trabalho na iniciativa privada. 4- estava perdendo poder de compra, por exemplo, começou a ter de pagar faculdade para o filho (o PT instalou cotas para pobres nas faculdades públicas), começou a ter de pagar para preços mais altos na saúde.
Dilma tinha de atender a quatro senhores : a- os empresários (estes, os mais importantes, pois eram eles os “eleitos pelo BNDES” para suprir todo o Estado, os políticos, os partidos, etc ). b- os pobres, com as bolsas-isto e programas-aquilo. c- a pequena burguesia da iniciativa privada, cada vez mais descontente com impostos e baixo retorno. d- a pequena burguesia do funcionalismo público: salários menores, sem os “generosos aumentos”, que acabaram porque a sociedade, a pequena-micro-média empresa, começou a parar de trabalhar (só as grandes empresas não tocam o país, sobretudo quando estas grandes empresas são bancadas pelo Estado).
Dilma resolveu atuar com a emoção e com a falta de opção (leia-se falta de dinheiro), pois não tem bom conhecimento de Ciência Política e não tem a intuição política de seu criador, Lula: optou por – na falta de recursos para os “mais pobres” (a clientela cativa da esquerda) – deixar o funcionalismo de lado (leia-se, ganhando menos). Este, com os proventos comidos pela inflação, pela falta de aumentos substanciais, revoltou-se. A revolta atingiu a “esfera moral”, inclusive porque esta classe vive em uma sociedade já revoltada com o Governo. O risco maior do Governo vem sobretudo da esfera advocatícia: auditores, juízes, promotores, controladores, procuradores, tribunais de contas, delegados, etc. Esta “classe advocatícia ampliada”, ao contrário de médicos é altamente eficiente, pois dedica-se exclusivamente ao Estado, e tem muito mais prerrogativas, ou seja, ganha muito melhor, tem mais autonomia (se Dilma indispor-se com eles, eles transformam sua vida num inferno, como de fato ocorreu), mais poder estatal. Ela pensou que este tipo de funcionário público seria inócuo, como os médicos, deu-se mal. Quis dar uma de “certinha” (“preciso do serviço mais do que de agradar funcionário”), de “ideóloga” (“os pobres antes dos médicos”), de “mandona” (“eles vão ver o que vou fazer com eles, vou quebrá-los”), mas isso funciona para médicos, não para os de carreira jurídica. Quis botar um Estado para funcionar,mas o PT criou um Estado gerido pelos próprios funcionários (sua maior massa de manobra), e este Estado visa o seu próprio bem-estar, não necessariamente o bem-estar do povo. Quis apertar o parafuso deste funcionário (sobretudo em época de vacas magras) e este voltou-se contra ela (o pior inimigo do governante é a pequena burguesia, já diz Todd).
Ao fortalecer o Estado, ao eleger o funcionário público como o pilar de seu projeto de poder, o PT cometeu um erro fatal, isso eles mesmos confidenciaram em seu último congresso: deu muita liberdade de ação para polícia, juízes, promotores, militares, etc. O “erro” deles foi que esse pessoal é preparado, ganha muito bem, e não tem atividade fora do Estado – como os médicos. Um médico funcionário público frustrado com seu trabalho, pode ir trabalhar fora e realizar-se, um juiz, promotor, policial, auditor, etc, não. Muitos passaram a dedicar-se com afinco à sua profissão, gerando as “Lava Jatos” da vida (constatações de toda corrupção que envolve a política, a alta burguesia e o Estado brasileiro). É claro que grande parte do funcionalismo, sobretudo os que ganhavam mais, continuaram “quietinhos”, a favor do Governo. Mas alguns mais inquietos, mais fálicos, e querendo trabalhar, resolveram apostar todas as fichas em seu trabalho. Dilma e o PT não podiam mais segurá-los, pois, na fase de “Lua-de-Mel” com o funcionalismo eles deram todos os poderes, autonomias, liberdades, para este segmento jurídico-advocatício. Mexeram no vespeiro errado: com os médicos não deu em nada, pois estes , não formados na arte jurídica, não fizeram praticamente nada, a não ser recolherem suas armas, acostumarem-se à sua “vidinha no serviço público” ou “tentarem algo na iniciativa privada”.
O problema é que, com o tempo, esta “pequena burguesia do funcionalismo público” (esta que primeiro se revoltou, e que, geralmente, está fora da carrreira advocatícia – vejam que a OAB só se “revoltou” quando a batalha já estava ganha) foi crescendo em número e insatisfação, e foi contaminando outros setores da sociedade, inclusive os da carreira jurídica ampliada – como mostra Todd, as revoluções começam na pequena burguesia. Os médicos, muitos funcionários públicos, a pequena burguesia não-funcionária pública, começaram a ver que a política estatizante do PT estava minando suas conquistas, extorquindo-lhes impostos para, ora cevar a pobreza das bolsas, cotas,programas, ora locupletar a alta burguesia. Resultado: consciência e revolta. O resto já sabemos.
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra)