Complexo de “vira-lata” e o racismo ecológico
Redação DM
Publicado em 22 de agosto de 2018 às 03:29 | Atualizado há 7 anos
A expressão, “complexo de vira-lata”, autoria do notável escritor Nelson Rodrigues, apesar da importância intelectual do seu nobre autor, tem muito a ver com o que se chama “racismo ecológico” ou do “meio ambiente”, que é como foi aflorado num Relatório de 1987, em uma Comissão de Justiça Social dos Estados Unidos, segundo mostra Dicionário de Relações Étnicas e Raciais, de Ellis Cashmora (2000), admitindo discriminação em âmbito ecológico, racial, econômico, político, social e tecnológico contra a Mãe Terra, seus ecossistemas com tudo o que existe neles e, sobretudo, em desfavor dos povos mais pobres do Planeta, destacados pelos segmentos negros que, além de serem vítimas do racismo individual, institucional e cultural, estudado em psicologia social, são vítimas do racismo ecológico, por quase sempre viverem em áreas ecologicamente vulneráveis, inadequadas à vida com dignidade, como terras áridas ou pouco produtivas, topos de montanhas, mangues, pântanos, imaginem as favelas do Rio de Janeiro, São Paulo e outras, de centros urbanos sem a real mobilidade, inclusive de trânsito, ainda inadequados à construção de moradia.
É estranho, contudo ninguém se salva!
Nelson Rodrigues, apesar do seu reconhecido talento literário, extraordinária veia satírica, para não dizer humorística, foi traído, no mínimo descuidado ou, quem sabe, levado pela questionável ideia de que os humanos são superiores ou o centro do Universo, fez uso da suposta inferioridade do nosso querido cachorro vira-lata como base para dizer que há uma “inferioridade” no povo brasileiro, que vai além do campo futebolístico, aspecto que não discordo. Fato incontroverso. Todavia, não pode ter base ou fundamento em “inferioridade” dos animais. Nenhum deles merece essa pecha, hipócrita, típica e somente dos humanos, antropológica. Tudo, portanto, invenção do dissimulado racismo cultural brasileiro, quase sempre surpreendente. Não seria melhor assumirmos nossas maldades, mais vezes subjetivas ou escondidinhas, até no subconsciente? Por que transferi-las para os animais? Imagine! Um fruto como o abacaxi, tão gostoso, ser tratado pejorativamente!
O certo é que Nelson Rodrigues, ao reconhecer o cachorra “Vira-lata” como inferior, praticou racismo ecológico ou do meio ambiente, talvez sem perceber que fazia ideia negativa ou inferiorizada da própria natureza, a Mãe Terra e seus animais, como ainda é muito comum no Brasil, por exemplo, chamar os nossos semelhantes de “veado”, pasmem! O dicionário de “pai dos burros”, a mulher de “piranha”, “galinha” e outros estereótipos, sem dúvida anacrônicos, injustos, nesse tempo no qual já somos a própria natureza tomando consciência de si mesma, fato revelador de que a tal superioridade humana, na relação com a Terra e os outros animais é, no mínimo, questionável.
Assim, o racismo ecológico, como se não bastasse outros tantos, como os contra gordos e velhos, revela toda a brutalidade e arrogância do ser humano que, de tão mesquinho, fingido e maldoso, continua considerando como bárbaro e selvagem, tudo o que é da natureza, ou seja, tudo o que se oporia à cultura, fenômeno eminentemente humano, mais vezes predador e racista, conforme o “espírito da época” e os interesses dominantes, como acontece em nossos dias, mantendo os mais brutais tipos de escravidões e as mais torpes modalidades de racismo, consoante demonstro no livro Racismo à Brasileira: raízes históricas, reimpressão da 4ª edição (2009), da conceituada Editora Anita Garibaldi.
Notem que são mais de 30 anos da presença do racismo ecológico. Surge no contexto e “fim” da guerra fria, prenhe de choques civilizatórios, com suas controvérsias culturais, explicados em livro clássico do cientista político de Harvard, Samuel Huntington, falecido no ano de 2008. No estranho e sempre polêmico “Fim da História”, de Francis Fukuyama. O trágico 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, com forte repercussão no mundo, ampliando conflito acentuadamente religioso, entre Ocidente e Oriente Médio, ainda presente, de onde emergiram outros conflitos, com repercussões igualmente atuais, mantendo e escondendo o racismo, inclusive ecológico, como o caso dos Estados Unidos, que, fundados em interesses ideológicos e puramente econômicos, considerando-se inatingíveis, sempre se ausentam ou dificultam os encontros internacionais a respeito dos estudos sobre Meio Ambiente, como ocorreu na Conferência do Rio de Janeiro de 1992 e outros eventos posteriores, sempre dificultando a resolução do assunto; ainda porque desejam manter e ter o controle da hegemonia política, econômica, ideológica, militar e tecnológica do Universo, a tal ponto de, com alguns outros países, terem polarizado e dividido a população deste mundo entre os ricos do Norte e os pobres do Sul, deixando as tristes lembranças de que o atual governo americano faz ouvidos moucos.
Vejo como lamentável e muito triste o que estão praticando contra a natureza, a Terra, seus ecossistemas, seus animais, as abelhas, desaparecendo, dependendo, inexoravelmente, do respeito ao meio ambiente, num momento em que começamos a ter maior tempo de vida, nos mostrando toda a importância da Ecologia, isto mesmo, com E maiúsculo, nos forçando a tê-la como valor imprescindível ou axioma desse novo tempo. Paradigma sem o qual, todos seremos vítima da morte, oferta negligencial, omissiva, oficial. De acordo com a inabilidade política de Donald Trump e seus acólitos. Pelo que vejo, nenhum demiurgo divino nos salvará.
(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado – MNU, da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, Ubego, AGI, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM – martinianojsilva@yahoo.com.br)