Opinião

Confesso que vivi as tensões e o encantamento da profissão médica – parte III

Diário da Manhã

Publicado em 9 de março de 2016 às 01:02 | Atualizado há 9 anos

Depois que fomos derrotados na eleição para a diretoria da Sociedade Goiana de Pecuária e Agricultura, senti que o “dr. Sérgio” perdeu, um pouco, o encantamento com aquela entidade; passou a fazer seus leilões em una das suas fazendas localizada no município de Hidrolandia, aliás, com o mesmo brilho com que os realizava no recinto do Parque de Exposições de Goiânia; atraía sempre, pelo seu enorme relacionamento no meio rural, uma multidão de amigos e dava gosto vê-lo circulando pelo curral trajando a sua indumentária de “fazendeiro”: – calça de linho branca, camisa branca, também de linho, solta por sobre a calça e sapatos pretos, bem engraxados.
Estive, pelo menos em duas oportunidades, nestes leilões, “dr. Sérgio” fazia questão dele mesmo “puxar” por todo o curral os animais que estavam sendo leiloados, como se fosse um peão; é uma homenagem que faço aos meus amigos que vieram de longe para me prestigiar, dizia ele.
Um dia concluímos que o “dr. Sérgio” deveria ser submetido a uma cirurgia abdominal para “fechamento” da sua colostomia; devido aos seus antecedentes médicos (cardíaco, com duas intervenções cirúrgicas no coração), achei por bem que ele deveria ser operado em São Paulo, onde as condições tecnológicas do hospital que estava lhe indicando (Hospital Sírio Libanês) me traziam mais tranquilidade e, como argumento final, a equipe que o havia operado do coração era daquele Hospital.
Com muita relutância ele aceitou meu parecer porém, exigia que eu o operasse; fiz-lhe ver que o cirurgião que estava lhe indicando (dr. Daher Cutait) era um renomado professor de medicina da USP e sobretudo meu amigo e não ficaria bem, para mim, que eu fosse operar na “sua casa”; pelo menos você estará presente no centro cirúrgico?
Para não contrariá-lo e, principalmente convencê-lo, fiz-lhe a promessa, no entanto com a esperança de que ele, ao conhecer o dr. Daher (médico humanista e competente), ficaria tranquilo; ledo engano, conto-lhes:
Quase que todos os dias falávamos ao telefone e os exames complementares que foram solicitados pelo dr. Daher estavam demorando, principalmente pela bateria de avaliação cardiológica e pareceres dos médicos que o haviam operado; quando recebi a notícia confirmando a data da cirurgia, constatei que no dia seguinte àquela, deveria dar uma palestra em um congresso Internacional de coloproctologia na Argentina. Grande impasse!
Telefonei para uma das suas filhas dizendo-lhe da minha dificuldade, ela me ouviu em silêncio e em seguida confessou-me:
– Acho que se o senhor não vier ele não será operado, pois ele não aceitará! Fiz-lhe ver que o meu compromisso era muito sério e que a minha presença na sala de cirurgia não acrescentaria nada ao ato cirúrgico; antes de despedirmos dei-lhe, a seu pedido, o horário do meu voo (que passaria por São Paulo) e o horário.
Achei que tudo estava resolvido!
No dia aprazado fui para São Paulo, onde trocaria de aeronave (cumprindo a escala de voo); embarquei no avião que seguiria para Buenos Aires, sempre com pensamento voltado para o “dr. Sérgio” que àquela hora deveria estar se preparando para ir para o centro cirúrgico. De repente o comandante do avião, com voz impositiva, disse pelo alto-falante:
– Passageiro Hélio Moreira, queira se identificar com a aeromoça, temos notificação de que o senhor deverá descer da aeronave; estupefação e susto! Chamei a comissária de bordo e me identifiquei e quis saber da razão da minha intimação para descer do avião.
Levou-me ao comandante e este: – É uma ordem que recebemos da Policia Federal e nos informaram que a sua presença esta sendo solicitada em um Hospital. Era o “dr. Sérgio”!
Retruquei (contando-lhe toda a história), que segundo entendia, não existia lei que me obrigasse a ir a um Hospital sem a minha vontade. Se eu fosse o senhor, disse o comandante, desceria, pois o avião não levantará voo com o senhor à bordo.
Obedeci e na ponta da escada estava uma das filhas do “dr. Sérgio” me aguardando, fomos diretamente para o hospital onde a cirurgia correu com enorme sucesso e, no dia seguinte, segui para Buenos Aires!
Conto esta história para mostrar o poder deste homem que foi capaz de mobilizar até a Polícia Federal!
Outro acontecimento que me enche de orgulho e que gostaria de compartilhar com meus leitores:
Um outro amigo meu pediu-me um aval no banco para um empréstimo de, se não me engano, 200.000 (cruzeiros? cruzados?). Infelizmente ele não conseguiu pagar a promissória no vencimento e o gerente do banco (meu amigo, sr. Ezio Panize) conhecendo minha vida financeira, concluiu que eu não tinha, de imediato, este dinheiro para pagar o banco e, por saber da minha amizade com o “dr. Sérgio”, comentou com ele sobre o assunto.
O que ele fez? mandou debitar a promissória na sua conta! Quando fui falar-lhe, no dia seguinte, olhou-me com cara de poucos amigos e disse:
– Achei que você fosse meu amigo e confiasse em mim, não quero nem discutir este assunto, quando você tiver dinheiro você me pagará. Amigo não deixa o outro na “chapada”!
Quando fui pagar-lhe, uns três meses depois (consegui vender um lote), “dr. Sérgio” voltou a ficar nervoso:
– Não me ofenda falando em juros!
Era este o feitio do meu amigo “dr. Sérgio”!
Um dos acontecimentos mais marcantes na vida do “dr. Sérgio” foi a morte de um dos seus filhos na região do estado Pará, onde ele possuía uma ou duas fazendas; “dr. Sérgio” certa feita me confidenciou que teve que enfrentar naquela região, alguns índios beligerantes na disputa por terras e mostrava-me uma cicatriz que tinha na perna, advinda de uma “flechada” que levou em um destes conflitos; este seu filho, a que me referi acima, foi morto, segundo ele me contava, em uma emboscada perpetrada por invasores de terra.
Daquele episódio em diante, “dr. Sérgio” mudou um pouco a sua personalidade, ficou, durante algum tempo um pouco deprimido e, sobretudo, muito triste com o acontecimento. Passou quase que um ano sem fazer a barba, cuja extensão lhe dava uma aparência bizarra:
– Enquanto não ver os assassinos do meu filho presos, não faço a barba! Cumpriu a promessa !
A última vez que o “dr. Sérgio” foi à Santa Tereza foi no nosso aniversário (Marília e meu, em janeiro de 2000), como sempre, levou a sua “trupe de cantadores”: esposa, filhos e filhas. Alguns dias antes, ele havia me enviado uma carreta de madeira (pau brasil) para ser utilizada na nova casa que estávamos construindo; foi um dia muito feliz para todos nós; dali para a frente sua saúde começou a piorar progressivamente.
Foi reoperado em São Paulo (coronárias); teve, adquirido nas suas andanças pelos sertões do Pará, um quadro de maleita (malária) muito grave (com comprometimento do pulmão) e se não fora o padrão de assistência tecnológica e médica provida pelo Hospital Alberto Einstein em São Paulo, acredito que dificilmente ele teria se recuperado. Ficou internado por quase um ano onde gastou, segundo ele me confidenciou, quase que um milhão de dólares!
A malaria deixou-lhe sequelas em um dos nossos órgãos vitais – o pulmão. A partir deste episódio, “dr. Sérgio” nunca mais voltou a ser o que era, várias vezes voltou a se internar naquele Hospital e, infelizmente, em uma destas internações, no dia 4 de agosto de 2003 ele faleceu com apenas 68 anos de idade.
Deixou imensa saudade, não somente para seus familiares como para seus amigos que, com muita honra, me incluo neste rol.
Algum tempo depois da sua morte, sua esposa, “srª Tamisa”, ficou sabendo que a maior parte da madeira que ele havia me presenteado foi utilizada para mobiliar a biblioteca da Santa Tereza (piso e principalmente as suas estantes); um dia, recebi dela um lindo jarro de flores (artificiais) com um bilhete:
– Dr. Hélio estas flores simbolizam a amizade que a nossa família tributa ao senhor e, principalmente, o amor que o “Sérgio” lhe dedicava.
Pedi a nossa tão querida escultora goiana, Maria Guilhermina, que desenhasse uma mesa especial onde seria colocado aquele vaso. O resultado ultrapassou as minhas expectativas, Maria Guilhermina esculpiu, em pedra sabão, as duas pernas da mesa, cuja tampa seria de vidro.
A fotografia que ilustra este texto, mostra a mesa, o jarro de flores e parte do interior da biblioteca.

(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)

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