Construindo uma casa
Redação DM
Publicado em 20 de agosto de 2018 às 22:30 | Atualizado há 7 anos
Bem pertinho do canteiro de obras, aquele restaurante por quilo estava sempre lotado. Pedreiros e seus pratos piramidais disputavam pedaços de peito, pequi e um pouco mais.
Apesar de serem empregados da construção civil de larga escala, cada um deles já havia construído sua própria casa e a conversa – entre uma garfada e outra – predileta era essa.
– Olha, tem que ter um esquadro bem grande. E não adianta ir pelo olho, passa a linha, a fiada de tijolo. Tem que passar o esquadro em todos os cômodos. Disse Tião.
– Entretanto você não pode ter dúvida. Descarta logo isso. Se não sabe que o esquadro existe, você também não existe. Ou você não pensa? Retrucou Zé.
Deglutindo a farinha junto com o feijão, a discussão começou a se acirrar. A coca de dois litros era pouco. A resposta seria a altura.
– Acho engraçado você falarem disso sem primeiro pensar na sapata. A sapata é o pé da construção. Quem aqui concreta melhor do que eu? João entrou de supetão na conversa.
– Concretar é uma arte, eu sei. Mas tem muita gente aqui que rouba na mistura. Ou compra coisa ruim. O cinismo aqui é mato, depois reclama de ter que morar na rua. Pontou Chico no alto dos seus quase dois metros de negritude.
Como todos ali eram amigos de longa data, sabia-se que não chegariam ao embate físico, mas os ânimos estavam se exaltando e era necessário mais torresminho para conter a fúria dialética ali instalada.
– Sei. Agora você vai posar de sabe tudo? Ou você acha que eu não vi você deixar de torcer bem o arame para amarrar firme a ferragem da aranha? Todo mundo tem defeito. Zé quase vociferando.
– Não é assim também não. Eu não acho que o homem é essencialmente mau. Com o tempo e as casas, você vai se civilizando e melhorando. Tião tentando proteger o Chico.
Para não ficarem cheios, vários picaram o tomate e comeram mais alface naquela hora. Até um pepino cortadinho fino também ajudou. Apesar de que a montanha de arroz, soltinho e branco era a melhor pedida.
– Levantar parede é fácil. Quero ver é aprumar tudo direitinho e lembrar de onde o sol nasce e onde ele deita. Já vi muita gente boa fazer casa invertida. Lembrou Chico.
– Olha gente, temos que conversar mais. Só o diálogo faz casa subir. Esse negócio de falar bonito e falhar no rejunte é coisa de principiante. Disse João calmamente.
Daqui a pouco os olhos se voltariam para a sobremesa, que poderia sem um doce com queijo ou então uma ou duas frutas. Era pouco, mas servia. Tião, Zé, João e Chico eram exemplos no que faziam, tanto que quando falavam, a peãozada ficava caladinha e de boca cheia.
– A casa sobe e você não falou nem do piso e nem do teto. Ou ignora o contrapiso ou vai morar em casinha de sapé que nem cumeeira tem? Provocou Chico, sempre incisivo.
– Todo mundo aqui sabe o que é certo e o que é errado. O problema é que isso muda com o tempo e cultura. Não vê os bacanas só querendo piso de hospital – o porcelanato – , tijolo de vidro, casa de pé direito alto e muito vidro verde? Riu Tião…
A risada descontraiu a moçada e todos ficaram mais leves depois dessa, apesar do estômago estar bem pesado e os gases começarem sair por todos os lados.
– Essa é boa. As casonas deles no condomínios fechados são iguaiszinhas uma as outras, igual nos conjuntos de periferia que a gente vê. Acho que rico tem mais necessidade de ser aceito do que o pobre. Até a pintura meio amarelo-ovo tá uma praga! Desandou a rir alto o Zé…
– É, isso tá certo. Eu acho que vive bem quem aproveita o dia, o dia de hoje mesmo. Tem que se libertar do medo. Ser autêntico. Viram a minha casa como é diferente? Bradou João.
E a sirene tocou, cada um levantou-se e apertaram as mãos com solenidade e prazer. Mãos calejadas, e línguas afiadas. Ali mais uma casa construída. No terreno mais sólido que se conhece, que é a amizade. Sincera e unida.
(JB Alencastro, médico)