Opinião

Contos do andarilho

Redação

Publicado em 15 de outubro de 2015 às 23:13 | Atualizado há 10 anos

O viajante segue seu caminho mesmo sem ter um destino certo, à busca e sempre continua um dia após o outro, e dessa forma vão se passando os dias. As incertezas são constantes, pois não existe certeza alguma no ser que vive vagando, não existem planos no campo material, pois quando partimos desse plano não podemos levar nada, e para que não exista apego a coisas materiais, o andarilho preferiu não acumular nada que possa ser usado neste mundo.

Olhando sempre em frente e buscando o tudo e o nada, as divagações são constantes em uma mente que vive em um ritmo diferente.

O céu amanhece escuro, a caminhada toma um ritmo mais lento, a chuva começa, e cada vez engrossa mais, o andarilho corre e o que encontra pela frente é um canteiro de obras. Ele entra de uma vez, um guarda entra na frente e impede o viajante de se abrigar, e fala em tom ríspido, suma daqui vagabundo.

Neste momento surge um homem jovem que interpela o guarda, o que está acontecendo.

O guarda responde nada não, patrão. É só mais um vagabundo. Nesse momento o andarilho também reage em tom ríspido, vagabundo não.

O homem se aproxima e pergunta ao viajante: o senhor é drogado ou alcoólatra? O andarilho responde que nem um nem outro. Sou um viajante. O homem com voz firme diz ao andarilho: entre e abrigue-se da chuva.

O guarda, com profunda admiração pelo patrão, sai da frente e diz ao andarilho: entre. O andarilho vê a situação e percebe que o patrão é um líder e não um chefe, pois o líder é seguido pelo exemplo e o chefe é aquele que só é respeitado pela posição hierárquica. O andarilho entra e o homem lhe chama: venha comigo, você parece cansado e com fome. Mandarei a cozinheira preparar algo para que possa comer. Rapidamente a comida chega ao escritório, e enquanto o andarilho come, os dois conversam.

O andarilho comenta sobre o respeito que as pessoas têm pelo jovem rapaz, e ele, sorrindo, fala: já fui um serviçal como todos aqui, e se hoje sou a diferença, foi pelo meu esforço.

O andarilho o parabeniza pela postura, e ele começa a contar sua história ao viajante.

Vim à capital para tratamento de saúde. Não tinha pai, era filho de mãe solteira, e naquela época mulheres que tinham filho sem ser casadas não eram aceitas na cidade em que eu morava. Foram muitos dias de viagem em estradas poeirentas, viajávamos na carroceria do caminhão do leiteiro, pois era a única condução que circulava naquela parte esquecida do mundo. O leiteiro era figura conhecida na região, parecia estrela de cinema.

Minha mãe juntou um porquinho e umas galinhas e pagou pela nossa viagem. Foi muito difícil chegar à capital. Foram anos de tratamento, mas acabei me curando, e após muita luta, minha mãe, vencida pela vida, mudou de plano astral.

Eu, sozinho, e ainda muito jovem, não tinha para onde ir, e nem como me manter. Acabei indo trabalhar na construção civil como servente, arrumando abrigo no canteiro de obras, tendo sempre em mente que a vida é feita das escolhas que fazemos, fazendo valer a lei da semeadura. Só iremos colher o que plantarmos, a jornada era longa, mas tinha comida e uma cama improvisada em um barraco de madeira. Mas eu era perseverante, trabalhando de dia como servente e à noite como o guarda noturno, e aos finais de semana juntava tábuas, ferro, prego, sacos de cimento usados e todo tipo de lixo, fazendo a limpeza do canteiro de obras, e por ali os dias foram se passando. Logo aprendi diversos ofícios, pois o trabalho também desenvolve nosso potencial intelectual, logo passei a entender de parte elétrica predial, encanação, assentar cerâmica, pintura, e acabei me tornando pedreiro.

A obra terminou, era um prédio moderno, um apartamento por andar. Os engenheiros da firma admiravam o meu esforço e dedicação, era um ser que não tinha preguiça e estava sempre pronto para servir. A empreiteira continuou seguindo seu caminho e com ela fui seguindo meu caminho.

Aos 19 anos sabia fazer de tudo e já tinha guardado o suficiente para adquirir um imóvel na periferia, acabei comprando um lote em um setor novo de ruas poeirentas sem esgoto e não tinha água tratada, e as poucas construções que tinham pelo local eram feitas de lona e madeira. Mas aquele pequeno pedaço de chão era meu, podia não valer muito, pois nem escritura tinha, era uma posse, ou melhor dizendo, uma invasão, mas nada daquilo importava. Finquei algumas estacas e joguei uma lona por cima, bati a mão no peito e disse: pronto, agora estou dentro do que é meu.

O serviço seguia, e em um dia de chuva forte a obra parou. Depois de grande tempestade a energia acabou, a cidade estava alagada. Um engenheiro saia do portão da obra e me viu parado ali com um saco de lixo sobre a cabeça e um par de chinelos gastos nos pés. O chefe me reconheceu de outras obras e me ofereceu uma carona, e teve que insistir para que eu aceitasse, e ali fomos em direção à minha casa. Depois de quase duas horas chegamos ao local onde eu morava, e, ao descermos do carro, agradeci ao engenheiro, que, comovido com a minha situação, resolveu descer do carro, e juntos fomos verificar a minha casa. O engenheiro quando viu aquela situação desabou em prantos, uma cena inusitada. Alguns paus e sobre eles tábuas que eram restos de construção, aquilo era a cama que eu dormia, um fio esticado no interior da barraca com roupas dependuradas era o guarda-roupa, e alguns tijolos com uma grade de ferro servia de fogão, um som velho achado do lixo em setor nobre e que funcionava apenas o rádio era o melhor móvel daquela casa.

O engenheiro parou e olhou em minha direção. Me vendo feliz, a chuva tinha molhado tudo por dentro, mas eu não me importava, sentia agradecido a Deus por ter algo que era meu. O patrão me perguntou: e agora, o que você fará? Olhei no fundo dos olhos dele e disse, assim como não tem noite eterna, ou por mais que seja longa e angustiante, o sol com certeza virá. Amanhã ou depois a chuva para, compro outra lona, ponho tudo no sol e sigo minha vida.

O engenheiro, impressionado com o tamanho do meu otimismo, perguntou: meu jovem o que você fez com o dinheiro acumulado com o fruto de seu suor?

Eu disse a eleque juntei cada centavo e comprei este lote. Squi estão somados todos os meus sacrifícios.

O engenheiro então se despediu e saiu.

O andarilho naquele momento pensou o que o engenheiro deve ter sentido ao ver aquela cena, pensando o quão pouco ganhava aquele ser tão iluminado que havia lhe servido por tanto tempo. A noite foi longa para o rico empreendedor, noite que durou uma eternidade. Ao amanhecer, quando chegou à obra, ali estava o rapaz já trabalhando. O engenheiro subiu as escadas, mandou chamar o encarregado e lhe contou o acontecido. O encarregado ficou surpreso, pois o rapaz nunca havia lhe falado nada, nunca reclamou da situação, e juntos o engenheiro e o encarregado resolveram ajudar o rapaz. O dia terminou e o patrão reuniu todos e contou a história do colega, não teve um que não se comovesse, e resolveram fazer um mutirão para construção de uma nova moradia, e com os materiais financiados pelo patrão. Assim foi, o domingo chegou e com ele, ao raiar do dia, pararam os caminhões da empresa cheios de gente e material, e como um toque de mágica, ao final do dia, um humilde barraco de três cômodos estava levantado e coberto.

Foi aí que a situação se inverteu. As lágrimas agora saíam eram dos olhos do menino quase homem, era uma gratidão que não cabia no peito, era uma festa de raios de luz, pois quando cada um doa o que pode, o corpo astral irradia uma luz que se estende a todo o universo. A partir dai tudo mudou, o locutor respira fundo e com lágrimas nos olhos retoma a história. Daquele dia em diante só fui melhorando o meu barraco.

Até que um dia surgiu um novo morador ao lado da minha casa, era um taxista. Ficamos amigos e durante uma conversa resolvemos construir um muro. Entrei com a mão de obra e ele com o material, e durante a construção do muro sua filha sentava-se em um banquinho e ficava conversando comigo. Com o passar dos dias me apaixonei por ela, porém seu ex-namorado a procurou com intenção de reatar o namoro. Ela relutou de início, pois também sentia algo por mim, mas acabou voltando.

Me afastei e continuei minha vida. Comecei a estudar, trabalhava durante o dia e fazia supletivo à noite. Quando chegava da aula via os dois namorando dentro do carro na porta da casa dela. Ignorava, mas a dor era intensa, e a tristeza tomava conta do meu ser. Nas minhas folgas fui melhorando minha casa e aos poucos virou uma bela construção, cheia de plantas e enfeites decorando todo o ambiente.

Um dia o pai dela me chamou para um churrasco na casa dele. Resisti de início, não queria expor meus sentimentos. Mas acabei indo, tinha vontade de vê-la. Pouco tempo após minha chegada o rapaz chegou com a família dele. Eles observavam tudo e eu sem querer ouvia os comentários. Os pais do rapaz já haviam visitado a família do meu vizinho em outras épocas, quando ele morava de aluguel em um setor nobre. Mas com a diminuição da renda ele foi obrigado a mudar de casa, indo para aquele setor humilde, que estava começando a tomar forma. A noite seguiu e não demorou muito o rapaz e sua família se foram, eu nunca mais os vi.

Os anos foram se passando, concluí o segundo grau e entrei na faculdade. De vez em quando via minha amada na porta da casa dela, mas ela fingia não me ver. O setor valorizou, foi asfaltado e junto com o asfalto vieram todos os outros benefícios. Anos depois me formei em Engenharia Civil e convidei meu patrão para a festa de formatura. Durante a festa conheci sua filha caçula, senti algo diferente e não demorou muito começamos a namorar. Ela também se formou em Engenharia e fomos trabalhar juntos.

Com a ajuda do pai dela montamos uma construtora, e logo já estávamos inseridos no mercado imobiliário. Trabalhava com afinco e dedicação, e ela era dedicada ao extremo. Decidimos que era hora de construirmos nossa família e começamos a construir nossa casa. Com o passar do tempo eu ia cada vez menos ao meu antigo lar.

Em uma tarde de domingo estava em minha casa podando a grama e alguém bateu em meu portão. Fiquei quieto e esperei bater de novo, quando bateu pela segunda vez fui ver quem era. Para minha surpresa era meu antigo amor e, ao abrir o portão, ela entrou rapidamente me perguntando o porquê de eu estar tão sumido. Respirei e disse a ela como minha vida estava indo, que eu estava de casamento marcado. Ela ficou surpresa e me perguntou por que eu havia saído da vida dela. Eu a fiz lembrar-se da época dos acontecimentos dos fatos. Ela me contou do que havia acontecido na festa, de que os pais do rapaz fizeram com que ele se afastasse dela pela diferença social, e que também não se abalou tanto, pois ela não gostava dele e queria era ficar comigo.

Eu lhe indaguei: então por que não me procurou e me falou do seu sentimento?

Ela me disse que ficou envergonhada de ter feito aquilo comigo, e que tinha ficado com ele porque eu não tinha condições de levar ela em festas e viagens, que era o que ela mais gostava.

Fiquei quieto, não manifestei nem um tipo de sentimento, pois meus planos eram outros. Havia me decidido o que realmente queria para minha vida e que tinha encontrado a pessoa que se encaixava no meu modo de viver, e que enquanto conversávamos percebi que o sentimento já não existia mais.

Ela então, sorrindo, me cobrou uma posição, e agi com honestidade. Disse que já não tinha mais sentimento por ela e que queria me casar com aquela com quem eu estava junto há tanto tempo e que era minha companheira de jornada.

Ela riu com sarcasmo e saiu se debochando de mim, dizendo que um dia eu iria me arrepender da escolha.

Fiquei aliviado com sua saída e percebi o quanto vivi enganado. Fiquei até mais alegre em ter resolvido aquela situação. Terminei o que estava fazendo, tomei um banho e fui dormir. Não demorou muito minha nova casa ficou pronta e eu me mudei meses depois. Me casei com a filha do meu ex-patrão e segui minha jornada. Agora me dedico aos meus afazeres com amor e dedicação. O andarilho fica feliz com a história que acaba de ouvir, a conversa segue outro rumo e ali ficam aqueles dois seres desconhecidos divagando sobre vida e destino, rindo e brincando dos infortúnios passados daquele ser iluminado que se encontra ali sentado na sua frente.

 

(Paulo César de Castro Gomes, formado em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira Goiânia, pós-graduado em docência universitária pela Universidade Salgado de Oliveira Goiânia, pós-graduando em Criminologia e Segurança Pública UFG)

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