Crise institucional: Legislativo x Judiciário
Diário da Manhã
Publicado em 8 de fevereiro de 2017 às 00:47 | Atualizado há 8 anos
Desde a antiguidade os filósofos, estudiosos e pensadores se preocuparam com a política e sua organização, mas é atribuído a Montesquieu (1689-1755) a idealização da divisão do Estado em Três Poderes, isto em 1748, quando formulou a “Teoria da Separação dos Poderes”, relatada em sua obra “O Espírito das Leis”. A proposta de divisão tinha como objetivo o Estado Ideal, formado pelo Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário, propiciando o equilíbrio necessário para evitar a interferência de um Poder em outro, de forma que todos os poderes seriam autônomos e independentes. Esta seria a maneira ideal de democracia, possibilitando substituir eficazmente o absolutismo que sempre predominou na história da humanidade. Em síntese, cabe ao Poder Legislativo elaborar as leis, ao Judiciário aplicá-las e ao Executivo administrá-las.
Mesmo propondo a divisão entre os poderes, Montesquieu apontou que cada um destes deveriam se equilibrar entre a autonomia e a intervenção nos demais. Dessa forma, cada Poder não poderia ser desrespeitado nas funções que deveria cumprir. Ao mesmo tempo, quando um deles se mostrasse excessivamente autoritário ou extrapolasse suas designações, os outros poderes teriam o direito de intervir contra tal situação desarmônica. A divisão dos Três Poderes na esfera política tornou-se a base de qualquer Estado Democrático Contemporâneo, incluindo o Brasil.
Nessa proposta o Poder Executivo tem como função observar as demandas da esfera pública e garantir os meios cabíveis para que as necessidades da coletividade sejam atendidas no interior daquilo que é determinado pela lei. Assim, mesmo tendo várias atribuições administrativas em seu bojo, os membros do Executivo não podem extrapolar o limite das leis criadas. Por sua vez, o Poder Legislativo tem como função congregar os representantes políticos que estabelecem a criação de novas leis. Ao serem eleitos pelos cidadãos, os membros do legislativo se tornam porta-vozes dos anseios e interesses da população como um todo. Além de tal tarefa, os membros do legislativo contam com dispositivos através dos quais podem fiscalizar o cumprimento das leis por parte do Executivo. Em várias situações é possível verificar que a simples presença da lei não basta para que os limites entre o lícito e o ilícito estejam claramente definidos. Em tais ocasiões, os membros do Poder Judiciário têm por função julgar, com base nos princípios legais, de que forma uma questão ou problema seja resolvido. Na figura dos juízes, promotores e advogados, o Judiciário garante que as questões concretas do cotidiano sejam resolvidas à luz da lei.
Na prática nem tudo funciona como previsto na teoria. Ninguém pode desconhecer que, recentemente, ocorreu grave crise institucional no Brasil, entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. Tudo começou com o pedido de vista do Ministro Dias Toffoli no processo que restringe réu na linha sucessória da Presidência da República. É publico e notório que Dias Toffoli engavetou o processo com o objetivo declarado de favorecer o Senador Renan Calheiros, o destinatário direto do processo referido. A crise foi agravada com a decisão liminar do Ministro Marco Aurélio afastando Renan Calheiros da Presidência do Senado por ter se tornado réu. A temperatura aumentou mais ainda quando Renan se recusou receber Oficial de Justiça para não ser notificado da decisão, e a Mesa Diretora do Senado apresentou documento manifestando que iria aguardar deliberação do plenário da Corte para, enfim, cumprir a decisão do ministro Marco Aurélio. O documento foi assinado por outros senadores, entre eles o próprio Renan. Na prática o Senado deixou de funcionar até que Supremo Tribunal Federal colocasse um ponto final no assunto. A atuação da Mesa Diretora mostrou a fragilidade em que se encontra o Brasil. Ignorando o perigo iminente, uma decisão que deveria ser cumprida foi solenemente ignorada por suas excelências.
As instituições brasileiras entraram numa fase perigosa por desobediência à ordem judicial, porquanto Renan estaria sujeito à prisão em flagrante por prática do crime de desobediência, tipificado no art. 330 do Código Penal. A hostilidade entre o Legislativo e o Judiciário chegou a níveis estarrecedores, com trocas de acusações e até a pressões feitas sob a forma de projetos de lei. O Poder Executivo foi pego de surpresa, parecendo ficar preocupado no início mas até que gostou do resultado final. O que pensam os políticos não interessa muito, e sim o que analisa a opinião pública. O que muito se ouviu foram comentários sobre “quem vai ganhar”. Entendo que é errada a postura avaliando quem ganha, pois em qualquer hipótese a sociedade perde. Serão extremamente desagradáveis acontecimentos semelhantes na vastidão do território nacional, com jurisdicionados recusando acatar decisões judiciais argumentando o precedente em comento. Ao que se sabe isto já está acontecendo, e será muito ruim se aumentar a intensidade.
Apesar dos pesares, algumas coisas positivas aconteceram e estão acontecendo. Felizmente a Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Cármen Lúcia, soube conduzir com competência e serenidade o desenrolar das turbulências. Com a eleição de novo presidente do Senado, Renan Calheiros passou para um plano secundário. O Executivo saiu fortalecido na eleição do Presidente da Câmara, o aliado Rodrigo Maia, de forma que está preparado o caminho para que aconteçam as reformas da previdência, trabalhista e política, que são necessárias. A trágica morte de Teori Zavascki, relator da Lava Jato no STF, preocupou toda nação, mas escolha do Ministro Edson Fachin como substituto agradou a todos e, antes, as 77 delações dos diretores da Odebrecht foram homologadas. Ainda, notícias cautelosas informam que a economia apresenta sinais de melhora.
Todavia, a verdade é que a crise institucional não findou, estado apenas em “stand by”. O choque entre os poderes foi prejudicial ao equilíbrio que deve predominar para o bem do País. Não se pode colocar a questão de forma tão simplista para saber quem ganhou ou quem perdeu. O argumento sobre o uso de dois pesos e duas medidas pelos representantes do Judiciário, valendo a lei para uns e para outros não, contraria a regra constitucional de que “todos são iguais”. Tentar argumentar que o problema já está superado nada mais é do que ignorar os fatos, pois realmente aconteceu crise institucional: Legislativo x Judiciário.
(Ismar Estulano Garcia, advogado, ex-presidente da OAB-GO, professor universitário, escritor)