Da dialética histórica e da nossa lógica processual
Diário da Manhã
Publicado em 26 de agosto de 2018 às 01:31 | Atualizado há 7 anos
Surgem questões relevantes na nossa dialética histórica desafiando o direito em face dos conflitos coletivos que se desdobram ante a organização social e a ordem jurídica estabelecida. Questões que envolvem revisão das instituições judiciais e da própria formação dos magistrados, sedimentada numa cultura jurídica tradicional. Surgem limitações impostas ao poder judiciário na própria forma organizacional do Estado burocrático, para oferecer respostas judiciais às crescentes demandas por justiça. Coloca-se o problema da unidade jurídico-institucional e da diversidade social e econômica com desafio para o futuro do judiciário. De consequência, o desafio ao exercício da magistratura entre os polos da profissionalização e da politização.
As flagrantes desigualdades sociais e econômicas, bem como a fragmentação cultural e o pluralismo ideológico, hoje verificados no Brasil e nos países latino-americanos, tem constituído uma ameaça à idealizada igualdade, liberdade e fraternidade preconizada pela remota Revolução francesa, em face da pretendida estabilidade positivista como sustentáculo do projeto liberal-burguês do Estado de direito. Identificadas, por sua vez, as desigualdades sociais e econômicas como contradições do sistema capitalista, surgem, de consequência, novas formas de organização social através de movimentos populares e sindicais, religiosos e comunitários, inspirados em direitos humanos que justificam novas formas de sociabilidades, de solidariedades e de identificações comuns, articulando novas forças dentro e fora da estrutura organizacional do Estado.
DA FRAGMENTAÇÃO ESTATAL
Entidades não-governamentais e para-governamentais que reforçam as experiências particularistas centradas nas ideias de auto-organização e auto-gestão, abrem caminhos para a configuração de um poder surgente paralelo ao poder estabelecido. Surgem comportamentos que comprometem a ordem vigente a partir da discussão de problemas específicos, dentre eles, a velha questão da relação capital versus trabalho, discussão essa “agora polarizada pela concentração e centralização do capital, pela oligopolização e monopolização do mercado, pela concentração dos poderes burocráticos, pela emergência de um sistema cartorial e corporativo de administração de preços e salários e, de outro lado, pela transformação do espaço da fábrica como campo de luta” (assim ressalta o já citado autor José Eduardo Faria, em “Justiça e conflito”).
Neste contexto o Estado intervencionista, constituído como poder executivo, se antecipa ao poder judiciário no enfrentamento das demandas conflitantes, buscando soluções casuísticas para os problemas sociais e econômicos, sem, contudo, resolvê-los. Por um lado limita-se o Estado a administrar a crise do setor econômico, bem assim no plano político e nas organizações jurídico-institucionais. Por outro lado, o Estado abre espaço para a fragmentação de sua matriz organizacional, aumentando e diversificando os instrumentos normativos que extrapolam seus aparelhos formais. E ao invés de reorganizar e unificar a sociedade, acaba por acompanhar a sua fragmentação, perdendo, por sua vez a unidade de suas funções regulatórias e arbitrais.
DA NOVA PRÁXIS JURÍDICA
As reivindicações de novos direitos se baseiam em necessidades materiais que se sobrepõem à racionalidade lógica e, assim, impõem nova práxis jurídica. E uma nova ordem prática impele os magistrados a um alargamento de visão que extrapola o especifico e limitado campo jurídico, ante um processo histórico que compromete a organicidade do sistema legal. Instaura-se um confronto dialético entre tradição e modernidade, entre burguesia industrial e oligarquias agrárias, entre classes empregadoras e classes trabalhadoras, quer nas zonas urbanas ou rurais, entre Estado e sociedade civil, entre nacionalismo e internacionalismo (leia-se globalização), entre acumulação de capital e distribuição de rendas, enfim, entre legitimidade e governabilidade.
As categorias normativas forjadas pelas concepções liberal-burguesas, voltadas para interesses individualistas, geram um fenômeno de dupla consequência no binômio Estado/Direito: o Estado é obrigado a responder, contraditoriamente, às pressões contraditórias de uma sociedade contraditória, mantendo formalmente o controle das técnicas jurídicas de dominação. O espaço do judiciário torna-se palco de luta de atores coletivos emergentes, com interesses conflitantes que desafiam a coerência das decisões judiciais voltadas para a composição de interesses individualistas. O mesmo modelo jurídico vigente há de servir, ao mesmo tempo, a dois modelos de sociedade. O modelo jurídico preconizado pela centralização, burocratização e formalização, acaba correspondendo às revindicações geradas pela descentralização, desburocratização e informalização. Difícil, portanto, a conciliação entre sistema lógico-formal e a concepção de justiça substantiva.
DA PROPOSTA ALTERNATIVA
Surge, assim, proposta alternativa dentro do mesmo sistema jurídico. Atores jurídicos envolvidos num mesmo tipo de conflito buscam soluções divergentes para a composição da lide. Segundo ressalta o citado autor José Eduardo Faria, ao mesmo tempo em que se critica o positivismo vigente, usa-se também instrumentalmente o mesmo sistema legal visando à possibilidade de sua reformulação com propostas alternativas pelas próprias vias judiciais. Cita Eduardo Faria, em “Justiça e conflito”, como exemplos dois julgamentos contraditórios levados a efeito num mesmo processo de ocupação de área urbana em Canoas, por uma centena de famílias que recorreram ao Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, obtendo ganho de causa. Tais julgamentos inspiraram-se numa concepção antagônica de justiça social, sendo uma de caráter positivista e outra alternativista, servindo como tema de debate sobre o papel do magistrado atuando frente a conflitos de massa (Vide: Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, Embargos Infringentes – 1002871119, 1º. Grupo Civil – Canoas).
Se a instituição judiciária é fundada nos princípios de imparcialidade, autonomia, independência, soberania, certeza e segurança, ao se considerar cada caso concreto, surge a indagação de como proceder à seleção e qualificação das diferentes formas de comportamento numa sociedade diversificada, em que todos são considerados iguais perante a lei? Qual seria o critério da seleção para classificação dos diferentes sujeitos? E como pode esse critério ser fundamentado e demonstrado em termos meramente lógicos? O positivismo normativista o resolve, como se vê, valendo-se do mesmo processo, como faca de dois gumes, ao ser aplicado na prática social para a solução de diferentes conflitos de interesses, com o mesmo procedimento interno e as mesmas categorias formais. É uma forma de empréstimo de um campo de valores para um campo de fatores, uma espécie de amarração dos contrários, só possível na arquitetura processual.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)