Das coisas inanimadas e do corpo sem alma
Diário da Manhã
Publicado em 22 de julho de 2016 às 02:42 | Atualizado há 9 anosQuando a gente diz estar um nosso irmão “ desanimado”, quer significar, na inteira e nítida verdade, estar ele como “alguém sem alma”. Ou alguém acabrunhado. Seria um morto-vivo ou zumbí? O termo latino anima, alma, inscrito claramente alí na palavra, precedido do prefixo “des”, e sucedido pelo sufixo “do”, não deixa dúvidas quanto ao real significado dele. O prefixo “des”, como a maioria já sabe, corresponde à negação ou oposição de uma realidade. Enquanto que o sufixo “do” acena com o tempo verbal, que vai por conta do particípio desanimado.
Afinal, o des-anima-do é de fato “alguém sem alma”, melhor, um zumbí, um morto-vivo, alguém a quem falta naturalmente ânimo ou alma para seguir avante.
No entanto, só para exemplificar, quando a gente segue desolado ou consternado ao cemitério, ou seja, desanimado, para dar adeus a um ente querido que fatalmente suspirou, não diz, ao vê-lo alí estendido no caixão, rodeado de cravos e crisântemos, a exalarem aquele perfume adocicado, estar o defunto “des-anima-do”. Não obstante saibamos seguramente estar alí, estendido na urna funerária, “alguém sem alma”. A cultura define ou seleciona o que precisa ser adequadamente dito.
Sucede haverem palavras que, culturalmente falando, não se encaixam adequadamente a certas circunstâncias. E des-anima-do não se encaixa, não, no exemplo dado
O correto seria falar, naquele momento fúnebre, por entre lágrimas evocativas de saudade, estar alí o corpo “inanimado” de uma pessoa. O termo anima está igualmente inscrito aí nela. Mas dizer isso seria dizer irremediavelmente o óbvio. Nem isso deverá certamente ser dito. Quando vai ao cemitério, a gente já sabe, por antecipação e experiência, que vai encontrar um corpo “in-anima-do”, a quem se devotam as últimas homenagens. Os familiares do morto querem ouvir coisas não manifestas: quão ele era generoso, caridoso, altruísta.
A diferença reside certamente no fato de que o des-anima-do, embora “alguém sem alma”, isto é, embora abatido, acha-se vivo ainda e vai se arrastando amargamente pelas veredas tortuosas da matéria; ao passo que o “in-anima-do”, embora igualmente “alguém sem alma”, jaz desoladamente sem vida.
Ou existe, desde sempre, seja há séculos e milênios, sem vida, sem anima, com a rigidez e imobilidade da pedra.
No texto “De Onde Vem o Desânimo?”, disponível na web e transcrito do livro A Luta Pessoal Para Resolver os Problemas da Vida Íntima, Ed. Canção Nova, 2006, 107 páginas, seu autor, o Padre Jonas Abib, questiona isto:
“E o que é alguém desanimado? A palavra já diz bem: “des-animado”. É como se a pessoa estivesse sem alma. A chama se apagou. A palavra desanimar vem da negação de “animare”, que significa dar alma, vida, movimento, coragem, entusiasmo, vivacidade. Com certeza, você jamais venderia sua alma, nem ficaria sem ela. Ninguém quer ficar desanimado”.
Curioso como um dos sinônimos de “animare”, que o Padre Jonas relaciona fartamente acima, é “entusiasmo”, cuja origem vem do grego “éntheos”, a significar literalmente ‘ter um deus dentro’, “e o substantivo enthusiasmós, o estado resultante desta intervenção psíquica.”
O entusiasmado se compararia então àquele corpo tomado de possessão divina ou transe, porquanto age movido não por vontade sua, mas guiado por uma potência divina, que atua conscientemente por ele, “como a pedra magnética. Esta pedra não apenas atrai anéis de ferro como transfere sua potência a eles de modo que passam a fazer o mesmo que a própria pedra: atrair outros anéis… E a potência que está em todos eles depende unicamente da pedra. Do mesmo modo, a Musa torna pessoas entusiasmadas, e através delas forma uma cadeia de entusiasmados pendurados uns nos outros… [os poetas], portanto, se são bons, não são por terem téchne, mas porque estão entuasiasmados, possuídos. E desse modo que cantam todos esses belos poemas.”
Leia, bem a respeito, as palavras que Niemeyer, em 2003, deixou registradas na Casa do Baile da Pampulha, Belo Horizonte:
“A Pampulha foi o início de Brasília. Os mesmos problemas, a mesma correria, o mesmo entusiasmo. E seu êxito fluiu, com certeza, na determinação com que JK construía a Nova Capital…”
Estamos inclinados a concluir que, se animare está sinonimicamente vinculado a entusiasmo, a negação deste, desentusiasmo, está sinonimicamente vinculada ao particípio desanimado.
Neste sentido, o significado de des-anima-do, a saber, ‘pessoa sem alma’, acena igualmente com a ideia de ‘ter um deus fora’. Com alguém sem Deus no coração. Não obstante se lembre também ser o “in-anima-do” aquele a quem infelizmente falta o sopro Divino dentro dele.
Parece ter a cultura selecionado “des-anima-do”, a despeito de aludir a algo “sem alma”, para pessoas com vida ainda. Enquanto que “in-anima-do”, a despeito de aludir igualmente a algo “sem alma”, para pessoas ou coisas sem vida. A diferença reside na aplicação adequada do termo ao contexto.
Prende-nos claramente a atenção, quanto ao verbete inanimado, o que traz O Diccionario da língua Portugueza Composto (1831) de Antonio de Moraes Silva : “adj. Sem alma.” (…) “inanimado é o que não tem alma; desanimado é aquelle que está como se perdèra a alma.”
Na realidade, esses dois particípios atuam como flagrante negação de animare, havendo apenas uma diferença contextual entre ambos.
Oh, quão triste parece a gente se lembrar agora daquela pessoa que, apesar de viva, parecia tão morta, des-anima-da, desfalecida; e daquela outra que, apesar de morta, in-anima-da, na urna fatídica estendida, entre cravos e crisântemos, parecia tão viva, anima-da, entusiasmada com a vida. Oh, como é des-animador!
(Pedro Nolasco de Araujo, mestre, pela PUC-Goiás, em Gestão do Patrimônio Cultural, advogado e membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI)