Opinião

De seca e de água

Diário da Manhã

Publicado em 2 de agosto de 2016 às 01:51 | Atualizado há 9 anos

Vejo as fotos de rios e córregos da cidade de Goiás – o Bacalhau, o Bagagem, o Rio Vermelho, todos secos de fazer dó. Mais a notícia de que os vilaboenses estão apreensivos com a possibilidade de faltar água na antiga capital.

Esse parece ser o retrato acabado da incompetência,  marca registrada dos governos e dos políticos nos últimos anos. Além de revelar-se também como depoimento sobre a incúria dos cidadãos que vivem, trabalham e produzem naquele município, eles próprios dependentes da preservação dos cursos dágua e mananciais que os abastecem.

A história de Vila Boa – depois Cidade de Goiás – liga-se visceralmente ao Rio Vermelho, onde foi encontrado ouro, fator de fixação de bandeirantes, faiscadores e mineradores na região. Vermelho – dizem – pela cor peculiar de sua lama em que faiscavam pepitas e grânulos preciosos, recolhidos em bateias. Nas suas margens foram concedidas datas minerais, ou seja, porções de terra nas quais a faina mineradora se exercitava segundo o Regulamento das Minas, editado pela Coroa Portuguesa – beneficiária maior das riquezas colhidas em meio ao “tumulto dos começos” da Capitania de Goiás.

O arraial – depois Vila Boa e Cidade de Goiás – expandiu-se de um lado e de outro do Rio Vermelho, que é referido por cronistas antigos como sendo caudaloso e navegável até desaguar no Araguaia, a cerca de 30 léguas de distância. Entretanto, suas nascentes na Serra Dourada foram afetadas pelo desmatamento progressivo, que destruiu as matas ciliares, trazendo assoreamento e desertificação. Quase como uma reação telúrica, cheias catastróficas eventuais fazem transbordar as águas do seu leito – como a que aconteceu em 2001, logo após a ex-capital ser declarada “patrimônio mundial” pela Unesco.

Toda a história e a cultura vilaboenses são impregnadas de referências a cursos dágua, a mananciais e cachoeiras. Fontes e dutos que abasteceram secularmente os moradores da cidade ainda estão lá – como o belíssimo Chafariz de Cauda, exemplar privilegiado da arte barroca portuguesa. Na paisagem urbana, ressaltava o perfil das aguadeiras – mulheres trabalhadoras que colhiam e transportavam água, equilibrando cântaros na cabeça e pisando com aprumo as pedras do calçamento irregular. Alegres e sorridentes levavam também recados, novidades, fofocas – e até bilhetes de enamorados.

No calor intenso da velha urbe cercada de morros e pouco bafejada pelos ventos, buscava-se refrigério nos banhos ao ar livre – no Poço da Carioca, no Poço do Bispo… De onde a dúvida: seguiria Sua Eminência o costume de os homens, toalha ao ombro, irem refrescar-se em águas igualitárias?

Memorialistas referem os piqueniques e convescotes familiares que aconteciam à margem de rios, córregos e ribeirões – como o Bacalhau e o Bagagem. Em áreas ensombradas, águas cristalinas corriam entre pedras, guardando remansos povoados de peixinhos inquietos. No alto, a ramagem das árvores contra o céu – e brincadeiras, gritos de alegria, provocações e caldos, fazendo as delícias de adultos e crianças. Depois, o sabor das quitandas, os bolos e biscoitos, as delicadas carnes fatiadas, os frangos fritos, os sucos de frutas.

Isso sem falar nas cachoeiras – como a das Andorinhas, num recanto paradisíaco do ribeirão Bacalhau; ou a Cachoeira Grande, com tantas opções de mergulho. Lazer descontraído, saudável e democrático, que desapareceu, ou quase, dada a redução a cada dia mais acentuada do volume de água, muitas vezes infestada pela poluição de resíduos não degradáveis, como plásticos e produtos químicos.

Há alguns anos, estive em Budapeste, a bela capital húngara cortada pelo Rio Danúbio. Impressiona ver como, depois de ter percorrido alguns milhares de quilômetros, suas águas continuam azuis, límpidas e transparentes. Claro está que sofisticadíssimas estações de tratamento cuidam de mantê-lo preservado, mas o que realmente impressiona é o respeito da população pelo rio – cuidando de não o sujar, como bem precioso que é de todos e que a todos beneficia.

Em nosso país, não faltam órgãos e instituições voltadas para a preservação e defesa do meio ambiente. Algumas atuantes, outras nem tanto, havendo as que são meros cabides de emprego. Mesmo se todas funcionassem exemplarmente, sem a colaboração dos cidadãos e cidadãs essa luta estará perdida – e legaremos nosso Planeta azul em condições de completa degradação às novas gerações.

Que não conhecerão jamais a delícia que é (foi?) mergulhar nas águas claras de um regato, quando o sol vai alto e o calor nos sufoca.

 

(Lena Castello Branco, escritora E- mail: [email protected])

 


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