Opinião

De súbito, a África no centro do mundo

Diário da Manhã

Publicado em 11 de dezembro de 2015 às 23:55 | Atualizado há 4 meses

A viagem ao Quênia, a Uganda e à República Centro-Africana que o papa Francisco realizou, de 25 a 30 de novembro, representou muito mais do que sua primeira experiência pastoral na África.

O continente, no imaginário coletivo mundial e, infelizmente, também na realidade, é por definição o símbolo da pobreza e da injustiça que reina no planeta: terra de conflitos endêmicos, onde a ânsia de poder e a avidez pelo dinheiro se cobrem de simulacros étnicos e religiosos.

Nesta fase histórica, essas são as pragas mais sangrentas da nossa humanidade doente, e Francisco, após dois anos de pontificado, queria dar o testemunho absoluto, com sua presença física, de seu compromisso com a misericórdia, ali onde essa virtude é mais necessária.

Deixou atrás de si, na Europa e dentro da sua própria casa, as dilacerações do terrorismo e os venenos do escândalo VatiLeaks II, mas sem esquecê-los. Quem sugeriu – autoridades francesas e políticos italianos – adiar a viagem, que apresentava sérios problemas de segurança, teve como resposta: “Quero ir à África Central de qualquer jeito. Se não puderem me levar, eu me atiro de paraquedas.”

E aos jornalistas que o interrogavam sobre o perigo de um atentado, e o Califado insinua que ele será o último papa, Francisco respondeu com a ironia de sempre: “Mais do que das pessoas, na África eu tenho medo dos mosquitos.”

O fato de manter uma viagem programada faz tempo representou, portanto, um sinal de serenidade num momento de particular tensão internacional, mas permitiu, sobretudo, manter uma promessa crucial: antecipar a inauguração do Ano Santo, prevista universalmente para 8 de dezembro, na Catedral de Bangui, capital da República Centro-Africana, devastada por anos de guerra civil.

Antes de aterrissar, esse papa original enviou, do avião que o transportava, um tuíte em língua suaíli: “Mungu abariki Kenya!” (Deus bendiga o Quênia!) Pouco depois, diante de seus anfitriões institucionais, mas dirigindo-se ao mundo inteiro, pronunciou a frase mais solene do primeiro dia africano: “A experiência demonstra que a violência, o conflito e o terrorismo se alimentam do medo, da desconfiança e do desespero, que nascem da pobreza e da frustração.” Não exatamente a mesma reflexão dos líderes ocidentais em luta contra o terrorismo integralista.

Durante toda a viagem, Francisco, como sempre, percorreu dezenas de quilômetros em seu carro sem proteção, encontrou multidões e autoridades, mas, como já aconteceu em La Paz ou Roma, o ambiente onde se revela mais à vontade são as periferias: “Aqui me sinto em casa”, anunciou chegando à favela Kangemi, em Nairóbi. Ainda uma vez, nessa ocasião Francisco confirmou que os pobres representam  a estrela-guia do seu pontificado.

Vale a pena citar literalmente suas palavras: “Quero me referir à sabedoria dos bairros populares. Uma sabedoria que brota de uma obstinada resistência do que é autêntico, dos valores evangélicos que a sociedade do bem-estar, entorpecida pelo consumo desenfreado, parece ter esquecido.”

A cultura das periferias “expressa valores como a solidariedade, dar a vida pelo outro, preferir o nascimento à morte” (…) “repartir o pão com o faminto, a paciência e a força diante das grandes adversidades” (…) “Cada ser humano é mais importante do que o deus dinheiro. Obrigado por terem nos lembrado que outra cultura é possível” (…) “Reconhecer essas manifestações de vida boa não significa desconhecer a terrível injustiça da marginalização urbana.

Trata-se da ferida provocada pelas minorias que concentram o poder e a riqueza, que os dilapidam egoisticamente, enquanto a crescente maioria das pessoas precisa refugiar-se nas periferias abandonadas, poluídas, descartadas”.

Durante todo o discurso, Jesus foi citado uma só vez, Deus às vezes e a Igreja nunca. Quem fala é Francisco, líder religioso e político por excelência, católico é certo, mas, sobretudo, chefe espiritual além de todas as divisões, defensor e crente naquele Deus que é único para todas as religiões, o Deus que une e que ama com misericórdia, cujo nome “não pode ser usado para justificar o ódio e a violência”.

Não faltou na sua missão africana uma referência aos males da própria casa, que são os males do mundo inteiro. Falando em Kampala, capital de Uganda, lembrou que  “a corrupção é um caminho de morte. Existe em todas as instituições, também no Vaticano”. “Abram as portas da justiça.” Com essa fórmula tradicional, pela primeira vez na história, um pontífice católico inaugurou o Jubileu, o Ano Santo, fora da Cidade Eterna, centro da cristandade.

Enquanto as estradas e as praças de Bangui pululavam de policiais armados até os dentes, o papa Francisco entrava na modesta catedral e afirmava que “o Ano Santo da Misericórdia chega antes nesta terra que sofre há anos com o ódio e a incompreensão”.

No país onde uma interminável guerra civil separa cristãos e muçulmanos, “pedimos paz, amor e perdão todos juntos. Com esta oração, começamos o Jubileu nesta capital espiritual do mundo de hoje”.

Durante a missa, o papa abandonou o altar e dirigiu-se ao lugar onde se sentava o imã muçulmano, para trocar com ele um abraço de paz. Com esse gesto, Bergoglio quis reiterar a irmandade entre as religiões, sobretudo com os muçulmanos, para combater o fundamentalismo, de qualquer natureza, que se esconde também na Igreja Católica, como ele afirmou.

“O diálogo ecumênico e inter-religioso não é um luxo, mas é essencial, é algo de que nosso mundo, ferido por conflitos e divisões, precisa sempre mais.”

Com essa missão pastoral delicada e complexa, Francisco realizou a extraordinária ação de colocar a África, mesmo por poucos dias, no centro da atenção política mundial, não somente no eixo da dimensão religiosa.

 

(Claudio Bernabucci, formado em Ciência Política na Universidade La Sapienza, ex-funcionário da ONU e da prefeitura de Roma – Reportagem originalmente publicada na CartaCapital)


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