Opinião

Debatendo com uma transexual sobre preconceitos que ela diz sofrer por parte de psiquiatras e da sociedade

Diário da Manhã

Publicado em 29 de outubro de 2015 às 21:16 | Atualizado há 10 anos

B.C., a transexual com quem venho debatendo, no nosso último artigo, dia 27.10.15, disse que, por ser considerada “doente”, precisa de “laudos psiquiátricos” e judiciais para tudo, inclusive para adoção, para cirurgia de mudança de sexo, etc, algo que, segundo ela, atenta contra seu livre-arbítrio.

Eu respondo: “B.C., o que você cita em sua última argumentação, ou seja, que ‘pessoas doentes não tem livre-arbítrio’, ao meu ver, não resiste a uma análise mais acurada.

Mesmo dentre as doenças psiquiátricas,  apenas algumas corroem o poder de julgar pelo ilícito de seus atos ou destroem a capacidade de determinar-se volitivamente conforme este julgamento (ato de vontade).  Muitos problemas psiquiátricos não anulam o livre-arbítrio, mas é preciso, sim, de um exame psiquiátrico acurado para saber o que é o que, ou seja, onde existe ou não anulação psiquiátrica do livre-arbítrio.

Portanto, da minha parte, e da ‘boa’ psiquiatria – inclusive com suas bases forenses – o que você argumenta não tem consistência. Respeito suas vivências de preconceitos, sejam advindas de juízes ou de psiquiatras, familiares e da sociedade que a estigmatiza, mas não acho que isto autoriza a projeção generalizada de seus fantasmas de humilhação sobre toda uma ciência ou sobre toda uma gama de profissionais…

Agora mesmo, no Hospital Asmigo, estou com dois pacientes internados que ‘querem mudar de sexo’. Um que é bissexual, em plena crise maníac , tentou auto-mutilar-se genitalmente, usa adereços femininos. De modo geral,  tudo isto some após tratamento adequado, permanecendo a bissexualidade, com leve propensão homossexual e maior propensão heterossexual, isso já aconteceu outras vezes. Agora mesmo, no início da internação, chegou com a firme decisão de fazer cirurgia de mudança de sexo, queria já começar a vestir-se como mulher dentro do hospital. Passada a crise, há apenas uma semana, relatou para sua médica: ‘Eu? Mudar de sexo? A senhora ficou doida? Eu nem mesmo sei se sou gay ou não’…!  Outro paciente, com uma encefalite límbica herpética, que desenvolveu comportamento pansexual do tipo Kluver-Bucy, agarra todo mundo para copular, desde homens, mulheres, até troncos de bananeira.  Não é ‘culpa da psiquiatria’ se aproximadamente 90% de pessoas com identidade de gênero trocada (transexuais) tenham uma doença bipolar associada… São estatísticas, não é preconceito…

Se você, B.C, acha que tais pacientes citados acima ‘estão sendo constrangidos em seu livre-arbítrio por um ignóbil psiquiatra normatizador-legisferante’, acho que aí fica difícil dialogar racionalmente…

Respeito que você tenha todas condições cognitivas-volitivas e responder por seu livre-arbítrio, mas querer usar disto para ‘revogar as doenças mentais e os psiquiatras como fruto do preconceito e da legislação normatizadora-moralizante’, aí, me desculpe, mas já acho um exagero… É claro, um exagero engendrado por vivências pessoais dignas de todo respeito. Mas, repetindo, tais vivências não podem servir de ‘normatização  ativista LGBT contra-normatizadora’, exatamente porque são o que são: uma experiência individualizada no seio de uma gama de eventos de enorme complexidade e nuances clínicos.”

B.C. responde: “Nossa, como você é exagerado. Eu não disse em nenhum momento que quero ‘revogar’ qualquer coisa. Mas se é pra fazer ciência, que seja com critérios e com ética. E que se tenha consciência do impacto dela na sociedade. e nossa, quando você fala dos seus pacientes, parece que está falando de bichos no zoológico. Mas, enfim, estou há dias comentando com vocês, e estou a fim de ir para frente, se ocupar meu tempo com outros assuntos. Eu poderia desperdiçar alguns minutos contra-argumentando tudo, mas isso já me cansou, pois vocês sequer estão lendo o que escrevo. Se me dão licença, eu vou desabilitar notificações, pois percebo que vocês estão muito na defensiva e vão discutir isso até ano que vem por simples teimosia e orgulho. Deixo a batata com vocês.”

Eu respondo: “É, B.C., mais um preconceito, e não é meu: ‘Parece que está falando de bichos do zoológico.’ Me mostre onde é que eu dei a entender que estava falando de bichos. Uma ofensa sem igual, e exatamente de uma pessoa que se diz sentir-se tão ofendida por ofensas recebidas… Estranho. Além do mais, não posso admitir uma afirmação destas, me desculpe, pois trato meus pacientes, a quem dedico uma vida, com o máximo de respeito, dignidade e mesmo compaixão pelo sofrimento deles. Portanto, mais um equívoco baseado em suas idiossincráticas posições pessoais que talvez esteja projetando sobre mim.”

No próximo artigo, de domingo, publico o último artigo desta série, com mais debates.

 

(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra. Artigos as terças, sextas, domingos – [email protected])


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