Delação premiada e o devido processo legal
Redação DM
Publicado em 18 de novembro de 2015 às 21:32 | Atualizado há 10 anosA delação premiada inserida no processo penal desafia direitos e garantias constitucionais já firmados entre o Estado democrático de direito e a sociedade, por via do texto constitucional e segundo as regras do devido processo legal.
A Lei 12.850/13 que define os crimes praticados por organizações criminosas e trata dos meios de obtenção de provas, refere-se a “colaboração” e não a “delação premiada”, como passou a ser chamado o novo instituto na mídia e no próprio meio jurídico.
A CF em seu art. 5°, inc. LXIII, estabelece que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”. Naturalmente ninguém deve ser constrangido a produzir prova contra si mesmo. A delação premiada pressupõe prévia confissão.
O art. 4° da lei 12.850/13 fala de colaboração “voluntária”. Antes desta lei, a delação se dizia “espontânea”. Mas delação feita quando o indiciado já se encontra em prisão cautelar, como vem ocorrendo, a confissão ou delação deixam de ser espontânea ou voluntária.
A moeda de troca tem sido a liberdade de locomoção concedida ao delator. Ora, em nosso ordenamento jurídico a liberdade é a regra, a prisão preventiva é exceção. A prisão utilizada como meio coercitivo é grave violação da ordem jurídica.
Já de início, falece o direito do acusado delator de valer-se do recurso constitucional do “habeas-corpus”. O pior não é só obrigar o delator a confessar, mas também a fornecer, entre outros dados, a identificação de outros supostos agentes, com o fito de não ser denunciado ou de obter redução de pena ou ainda perdão judicial.
O perdão de Cleópatra
Aí a figura do juiz volta a ser a figura do rei, para não dizer que o judiciário passa a ser a ditadura do direito no chamado Estado democrático. Uma vez homologada a delação, o acusado é posto em liberdade e se transforma em testemunha de acusação.
Esse, diríamos, é o verdadeiro perdão de Cleópatra (a legendária rainha do Egito), que perdoou uma escrava após ter-lhe confessado, arrependida, que envenenara seu vinho, mas depois sendo obrigada a tomar do mesmo cálice. No caso em foco, o delator voltará à prisão e provavelmente será condenado se os depoimentos futuros não confirmarem as suas declarações.
Outro aspecto a ser questionado é o da garantia do juiz natural, pelo que todo cidadão não pode ser processado nem sentenciado se não por juiz cuja competência tenha sido fixada por lei anterior à ocorrência do fato penal.
Ademais, quando a Constituição garante a todos o acesso à jurisdição (art. 5°, inc. XXXV), garante também o direito fundamental à imparcialidade do juiz. Ora, o art. 4°, § 6° da Lei 12.850/13 vedou a participação do juiz nos acordos de delação.
Por sua vez o art. 4°, § 7°, da mesma lei prevê a “homologação judicial” da delação pelo mesmo juiz que participou do acordo, ouvindo “sigilosamente” o colaborador. Embora o faça na presença do seu defensor, fere o direito dos demais arguídos (ausentes), que estão envolvidos no mesmo fato.
Ora, homologado o acordo, está o juiz antecipando sua convicção sobre a suposta veracidade das informações fornecidas pelo delator, envolvendo os demais coautores ou partícipes. Se assim é, qual a garantia da imparcialidade do juiz que homologou o próprio processo a ser por ele julgado? E, pergunta-se, onde está o principio do contraditório como base do devido processo legal?
(Esses argumentos, à parte a ironia deste autor, foram extraídos de recente artigo da lavra de Renato Marcão, revista Consulex, do mês de fevereiro transato, p. 22/23).
Da lide processual
De ressaltar-se que, na lide processual, as partes são representadas pelo procurador devidamente habilitado, o qual estabelece uma ponte triangular entre autor, juiz e réu, tanto nas ações cíveis quanto criminais.
Eis que no Estado democrático de direito, são fundamentais os princípios do contraditório, da ampla defesa, da reserva legal, do juiz natural, da imparcialidade do juiz, da iniciativa das partes e do devido processo legal.
Para ser mais didático, este autor apresenta resumidamente, em versos de cordel, os mencionados princípios (vide Os Poderes da Posse, de Emílio Vieira, Goiânia: Kelps, 2011, p. 293):
Principio do contraditório e da ampla defesa
Processo é a vida da ação: a própria vida é um que une dois pólos opostos dentro de um mesmo universo,buscando a super/ação do caminho controverso.
Principio da reserva legal e do juiz natural
É uma ponte triangular que une autor, juiz e réu:
cada um em seu lugar, cada qual em seu papel.
Nulla poena sine lege, a lide não segue ao léu.
Principio da iniciativa das partes e da imparcialidade do juiz
A iniciativa das partes, na ponte, é fundamental:
ao centro, o juiz é inerte, livre, neutro, imparcial.
Quer-se alcançar a justiça como bem de cada qual.
Principio da legalidade e do devido processo penal
Não mais o favor do Rei, não mais o Estado total.
Agora o poder é a Lei. E o poderoso, afinal?
Não está por trás do devido, dito, processo legal?
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])