Direitos sociais no Estado Laico
Diário da Manhã
Publicado em 15 de março de 2017 às 02:47 | Atualizado há 8 anos
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.076, cujo relator foi o Ministro Carlos Velloso, discutiu-se a respeito do preâmbulo da Constituição (mais especificamente o trecho “(…)promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”). O Relator cita “Estudos sobre a Constituição” de Jorge Miranda, cuja conclusão é de que o preâmbulo “não cria direitos ou deveres” e “não há inconstitucionalidade por violação do Preâmbulo” (Jorge Miranda, ob. cit., págs. 22 e 24). O entendimento do Supremo Tribunal Federal e de diversos juristas é que“ ‘sob a proteção de Deus’ não é uma norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada”, conforme o voto do Ministro Sepúlveda Pertence. Em linhas gerais, mesmo a ADI em questão não tendo a intenção de julgar se o preâmbulo da Constituição feria ou não a laicidade do Estado, é possível inferir que o Supremo entende que não a fere.
Outro caso interessante foi um pedido de liminar na justiça federal realizado pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, em novembro de 2012, que pedia a retirada da expressão “Deus seja louvado” do papel moeda em circulação. O procurador Jefferson Aparecido Dias, o autor da ação em questão, substituiu o nome ‘Deus’ por outras divindades com o intuito de mostrar que o estranhamento causado pelos seus exemplos é a mesma que deveria existir com a expressão atual. Além disso, a frase em questão atentaria contra alguns princípios básicos do Estado brasileiro (como a igualdade e a não exclusão de minorias).
Uma terceira exemplificação da influência religiosa no Estado é a presença de Bíblia e Crucifixos em diversos órgãos públicos. Todavia, a juíza federal Maria Lúcia Lencastre Ursaia julgou que a presença de tais símbolos religiosos não ofende a laicidade do Estado nem mesmo a liberdade religiosa.
Porém, é importante ressaltar que a laicidade do Estado só não é ferida quando as demonstrações religiosas são de caráter judaico-cristão. Quando, em 2003, o Parque Vaca Brava recebeu a exposição artística Orixás da Bahia que consistia em oito orixás gigantes flutuando no lago, houve diversas manifestações de grupos religiosos. Estes bradavam gritos intolerantes, alguns diziam que aquelas imagens representavam demônios e outros ainda diziam que era um absurdo que o governo permitisse esse tipo de manifestação religiosa em um espaço público. Para muitos, uma mostra cultural faz o Estado se tornar confessional, mas todas as demonstrações anteriores não o fazem.
Sem dúvida, a manifestação contra os Orixás da Bahia foi algo grave e que prejudicou diversas pessoas (seguidores de religiões de matriz africana ou, até mesmo, apenas admiradores da arte). Porém, seria muito bom –bom no sentido de “melhor do que é atualmente”- se a influência religiosa prejudicasse apenas a arte. Isto, porque diversos direitos básicos dos cidadãos sofrem influência direta da voz do cristianismo. Se por tanto tempo na Constituição e no Código Civil a mulher era considerada submissa, se até 2005 o Estado separava “mulher honesta” das demais (bem semelhante às expressões “mulher pra casar” e “mulher pra pegar” ainda tão presente, infelizmente, no cotidiano do brasileiro) e o divórcio não era permitido, certamente o espírito religioso auxiliou na demora para a atualização do Direito.
Há diversos outros direitos que são negados a parcelas significativamente grandes da população, principalmente por causa da religião. Semana passada a CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) aprovou a união estável e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, é algo a ser celebrado na comunidade LGBT, porém a proposta ainda deverá passar pela Câmara dos Deputados e, possivelmente, sofrerá fortes ataques da Bancada Fundamentalista. O casamento como Direito Civil em nada tem a ver com a religião e não deveria ser influenciado pela mesma.
Ainda sobre os não heterossexuais, no Brasil, homens gays que tiveram uma ou mais relações sexuais no último ano sofrem diversas dificuldades para doar sangue. Mesmo que alguns bancos de doação permitam e outros não se preocupam em perguntar a orientação sexual do paciente, em muitos outros é comum o apelo à Portaria 258/2016, do Ministério da Saúde e à Resolução 43/2014 da Anvisa que proíbem homossexuais masculinos sexualmente ativos de doarem (proibição esta que não existe para homens heterossexuais sexualmente ativos). É importante ressaltar que todo sangue doado é devidamente testado, sendo assim o argumento de que a proibição da doação se deve ao fato de homens gays serem vetores de DSTs é duplamente inválido porque 1- Mesmo que fosse, se o sangue é testado, não há lógica em desperdiçar uma possível doação e 2- Há anos deixou-se de se considerar a Aids como um “câncer gay”, hoje se sabe que ela é, também, extremamente frequente entre casais cisgêneros-heterossexuais. É importante ressaltar que esta proibição não só discrimina homossexuais, mas a falta de sangue –promovida pela proibição de doar- pode impedir que vidas sejam salvas.
O debate de gênero nas escolas (que, basicamente, tinha como função questionar o machismo e diversas formas de preconceito) foi impedido de acontecer sob pretexto de ser “propaganda gayzista” e querer “corromper a juventude”. O aborto de feto anencéfalos foi aprovado pelo Supremo, mas não sem diversos protestos. O aborto para fetos com menos de doze semanas ainda não foi aprovado no Brasil. A adoção de crianças por casais LGBTs, em alguns locais, ainda é extremamente burocrática. Tentou-se dar o direito de que igrejas contestassem o Supremo Tribunal Federal (elas já não pagam impostos e ainda querem mais poder. Porém, é comum falarem que quem exige privilégios são as minorias sociais). Tentou-se regulamentar uma espécie de tortura psicológica –no sentido de “violência” exercida contra um indivíduo, em que um psicólogo teria liberdade para tentar transformar crianças LGBTs em pessoas cisgêneras e heterossexuais- apelidada de “cura gay”. A criminalização da homofobia também está sendo impedida (não sei dizer quais os argumentos para proibir uma forma de preconceito). Tentou-se incluir na grade curricular das escolas o ensino do Criacionismo (teoria esta considerada uma metáfora inclusive por muitos religiosos e que carece totalmente de bases científicas). E dificultam a legalização da maconha (mesmo esta sendo menos letal que bebidas alcoólicas).
“O Brasil é um Estado laico, não um Estado ateu”. Esta frase é dita repetidas vezes como uma tentativa esdrúxula de refutar tudo o que foi dito. Porém, ela é extremamente óbvia: o Estado não faz propaganda do ateísmo nem suprime a liberdade religiosa. Ele, apenas, deveria não beneficiar uma religião em detrimento das demais. Estar escrito na nota “Deus seja louvado”, os crucifixos presentes em todo prédio público e o preâmbulo da Constituição incomodam. Porém, acredito que isso até poderia passar despercebido se todas as outras desigualdades citadas fossem corrigidas.
(Arthur Santana tem 18 anos, acadêmico de Direito na Universidade Federal de Goiás e de Letras na Cruzeiro do Sul)