Opinião

Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico de Goiás

Diário da Manhã

Publicado em 24 de maio de 2017 às 02:41 | Atualizado há 8 anos

Assim como o fiz ao tomar posse na Augusta Academia Goiana de Letras, em 10 de agosto de 2000, não tenho como chegar a esse operosos Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, também iniciativa altruísta do saudoso Colemar Natal e Silva, sem invocar as minhas reminiscências, sem trazer à lembrança, um pouco dos meus antepassados e de onde venho, como as orquídeas, de um tronco rude, pois nascido e crescido nas canículas do sertão em uma paisagem árida e agreste. Daí, talvez, a minha alma cheia de teimosias e irreverências, profundamente marcada pelo sentido moral da vida e da primazia do caráter e da honra, como sinais típicos do filho nordestino a que se refere o filosofo Tristão de Athaíde. Venho de uma pequena casa de pau-a-pique, que já é tapera, construída em Poço da Pedra, próxima de Lagoa do Alegre, Município de Casa Nova, Bahia, no mais puro sertão, onde nasci e fui forjado no campo e na roça, caçando, plantando e colhendo; onde um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo d’água cristalina e pura; onde os cactos são fontes vegetais; onde o xiquexique, o mandacaru, o juazeiro, o coroá, a bromélia, a vereda sertaneja e o umbuzeiro – árvore sagrada do sertão – formam a belíssima paisagem da caatinga xerófila, o manto esbranquiçado da concepção tupi.

Venho desse chão e desses contrastes. Venho desse cenário de vida bucólica e romântica, deixando-me uma configuração física, humana e social consagrada pelo livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, obra, a um só tempo, de ciência e arte cuja leitura imprescindível impressionou-me profundamente tornando-me um habitante incurável do sertão onde a mancha da maldade não teria chegado e a ingenuidade nunca deixou de ser honradez, revelando, assim, duas virtudes básicas, a bondade, sempre grande, e a grandeza, sempre boa. Venho dessa visão de mundo, dessa forma natural de vida, de paz, de inocência e virtudes simples, de onde ainda tenho saudades dos meus avós paternos que não conheci, José Henrique e Maria José, procedentes de terras piauienses de onde trago o meu lado pataxó e o meu pedaço africano.

Na verdade, venho da valentia sertaneja, das histórias cruentas que minha avó Maria Balbina me contava de Contestado, de Caldeirão, de Pau-de-Colher, de Pedra Bonita, de Lampião e da Guerra de Canudos onde a grandeza guerreira de Antônio Conselheiro, segundo o sociólogo Rui Faço, comprovou que o cangaço e o fanatismo dos sertanejos eram formas de reação aguda e legítima contra a injustiça e desumana estrutura social vigente e não simples exteriorizações criminosas ou meros aspectos de baixa heresia como tem narrado a história oficial.

Venho das veredas estreitas, do meu pé de jurema, da minha umburana brava ou vaqueira em que amarrava um jumento manhoso e de pelo duro, que me levava à escolinha rural de Lagoa do Alegre, onde o professor Mundoca me ensinou as primeiras letras. Venho desse panorama original e aprazível, de forma discriminada do belo, onde, apesar do pouco estímulo ao sagrado ofício de escrever e ao difícil prazer de ler, havia tempo para sonhar, ter esperança e acreditar que estes ofícios indeléveis são atos de amor, de liberdade e de solidão. Solidão na qual, ainda rapazinho, sonhei ser escritor, sem a mínima consciência desse importante mister e da responsabilidade dos que escrevem, porque escrevem e para quem escrevem. Época da minha vida em que, não sei como já imaginava ser advogado, sem perspectiva alguma, conquista só alcançada através do altruísta e bondoso gesto de um tio – Manoel Dioz Silva – saudosa memória, a quem tudo devo. Sem ele, é provável que eu não estivesse aqui. Venho, portanto, dessa vida campestre de muitas lutas, de muitos significados, de muitos sentimentos e de não sei quantas atividades, no espaço e no tempo, ensinando-me que somos feitos da matéria dos sonhos de que fala William Shakespeare, onde temos a expectativa de realizar nossas aspirações, sem distinção de pessoas, como queria o meu avô materno Sotero Silva e o meu pai, lavrador Mariano José dos Santos, que morreu na guerra de Pau-de-Colher fazendo história do cangaço. A minha mãe, Maria Isabel, vítima de viuvez precoce, mulher simples, valente, estimada, extremamente vaidosa e respeitada como moça do corpo mais elegante e bonito da sua redondeza sertaneja, que, com maestria, dignidade, bravura e amor, soube criar e conduzir seis filhos naquela região inóspita das revoluções de que fala o poeta Manuel Bandeira em seu poema “Evocação do Recife”.

Venho também de Mato Grosso, especialmente da calorenta Cuiabá, onde inaugurei uma nova visão de mundo em minha vida, onde afugentei todos os meus pecados no internato do Liceu Salesiano São Gonçalo, onde exibir meus dotes de dançarino, nutrir o mais apreciado e especial calor humano da gente cuiabana e, imaginem! Conheci a minha idolatrada Chica, sendo ali que as musas do cerrado marcaram o meu primeiro encontro afetuoso com ela, pedaço de uma longa estrada, motivo maior de minha estada por aqui, trazendo-me uma relação amorosa, fecunda e estável, deixando-me, após o austero casamento, três preciosos filhos: Vasco Rezende de Silva, Rui Carlos Rezende Silva e Kátia Rezende Silva. Isso foi tão forte, que, em 1958, chego a Goiás, terra alta e das semelhanças étnicas, inicialmente, pela atraente Mineiros, terra de povo simples e bom, onde três segmentos sociais básicos configuram a cidade: a imigração mineira, procedente do Triângulo Mineiro; o nordestino, destacado pelos baianos; e o sulista, realçado pelos gaúchos, não podendo esquecer o segmento negro do Cedro, do Buracão, do Bom Jardim e da Grunga, povo que, já por volta de 1860, organizava quilombos na região. Venho desses longes e desses sonhos baianos, mato-grossenses, mineirenses, onde não tive a sorte de nascer e me tornar mato-grossense e goiano, mas profundamente mineirense.

Venho para este sodalício da História e da complexidade de outros conhecimentos com as minhas alpercatas, meu farnel de sonhos e o meu embornal pejado de suares de que fala o poeta Aidenor Aires. Estou aqui atendendo a um convite especial, através do ofício n. 095/2004-IHGG, a mim endereçado em 15 de setembro de 2004 pelo abnegado Presidente desta casa, escritor José Mendonça Teles, comunicando-me o seguinte:

“É com satisfação que comunico a V. As. Que na Sessão Ordinária do dia 16 de março do corrente seu nome foi apresentado e aprovado por unanimidade dos Sócios Titulares do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, onde ocupará a Cadeira n.18, cujo Patrono é Couto de Magalhães,

E acrescentando:

A posse, em sessão solene, realizar-se-á, dia 26 de outubro de 2004, no Auditório Augusto da Paixão Fleury Curado desta Instituição”, dizendo, de resto, que aguardava a minha presença. Dos meus familiares e dos meus amigos.

Aqui estou, portanto, todo orgulhoso, para assumir a cadeira nº 18, desse Instituto, cuja sócia-titular era a antropóloga e professora universitária, Mari de Nasaré Baiocchi, ora elevada ao merecido posto de sócia emérita desta Casa e que tem como obras principais decorrentes de suas percucientes atividades acadêmicas “Negros de Cedro” (1983) e “Kalunga: povo da terra” (1999), que caracterizam uma importante contribuição ao estudo historiográfico sobre o segmento negro em Goiás.

Aqui estou também para evocar, de forma panorâmica, a vida do Patrono da Cadeira 18, o dinâmico administrador, político e intelectual José Vieira Couto de Magalhães, nascido na fazenda do Gavião, município de Diamantino, Minas Gerais, em 1º de novembro de 1837, a quem o Brasil tanto deve em sua história do Império, período no qual presidiu quatro províncias: Goiás, Pará, Mato-grosso e São Paulo, tratando-se, pois, de homem a quem Goiás há de reverenciar como um dos principais precursores do seu progresso, pois aqui, já aos 24 anos de idade, assumiu a Presidência da Província em pleno século XIX, deixando a sua marca de homem de personalidade forte, ousado e de fibra invejável, desejoso de conhecer o desconhecido e de penetrar o impenetrável. Queria, de todo modo, tirar a província Goiana do isolamento geográfico, tendo como meta principal a dos transportes, que se afigurava de máxima importância para o futuro de Goiás, levando o assunto à Assembleia Provincial em 1863, chamando para esse ponto a atenção dos legisladores. Como informa, aliás, um dos seus melhores biógrafos, o escritor Miguel Jorge, caríssimo confrade de Academia Goiana de Letras, em “Couto Magalhães: a vida de um homem” (1970).

Para escoadouro dos produtos da província, era a própria natureza que indicava as vias de transportes: para o sul, o rio Taquary; para o norte, o Araguaia e o Tocantins. Para tanto, Couto Magalhães desenvolveu uma série de estudos sobre os dois rios, chegando à conclusão de que a navegação do Araguaia era preferível à do Tocantins, para pôr Goiás em contato com os centros comerciais de Mato Grosso, Pará e Maranhão.

Foi assim que escreveu duas obras básicas à melhor compreensão da História e da Literatura “regional” de Goiás, inclusive em seu aspecto oral e etnográfico, “Viagens ao Araguaia” (1863) e “O Selvagem” (1876), ninguém podendo olvidá-las em qualquer estudo sério e responsável que se fizer nessas terras de Cora Coralina, onde a História Social do Conhecimento continua um dos maiores desafios aos pesquisadores da Ciência de Heródoto. Gilberto Mendonça Teles, aliás, no clássico ensaio “A poesia em Goiás” (1964), mostra a inegável contribuição de Couto Magalhães no estado do folclore de Goiás, especialmente na sua vertente indígena, de forte lirismo selvagem, se reduzindo a cada dia no incontido processo de urbanização do Estado.

 

A florzinha do pau-darc

É da cor do entardecer,

Traz tristeza, traz quebrantos,

Tu, que não hás de trazer…

Lá na serra dos Angicos,

Quanta flor anda a brotar!

Assim também são teus olhos

Quando pões-me a namorar…

 

Mas hoje, nesta Magna Sessão de Posse, o que mais me comove é a percepção de sentir entre a mais nobre e fina elite cultural do Estado, representada principalmente pelos historiadores, todos, por certo, inspirados em Clio, a velha musa da História. Vejo que aqui é o lugar adequado para prosseguir as minhas pesquisas e realizar os meus sonhos intelectuais, especialmente de historiador, pois, além de ser uma “academia de estudiosos”, é um centro de referência documental. E como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 21 de outubro de 1838, é também um órgão fomentador e realizador de pesquisas na área de ciências sociais, particularmente história. Seu objetivo de estudo não tem como não ser o Brasil, mas a sua prioridade é o estado do vasto território de Goiás, na sua formação social, econômica, cultural e política. Por isso, por toda a sua laboriosa vida, esteve sempre coligindo documentos, dentro e fora do pais, sobre a história de Goiás, bem como elaborando pesquisas e estudos de natureza histórica, geográfica e etnográfica. É assim que ouso reverenciar, genuflexo, a extraordinária figura do seu fundador, Colemar Natal e Silva, cujos méritos são imorredouros e cujos passos, grandiosos, são seguidos por todos nós e sobremodo por seu atual Presidente, o cronista, historiador, mecenas José Mendonça Teles, meu irmão, meu guru, maior responsável pela organização e preservação desse dinâmico Instituto e por minha presença aqui nessa bela manha primaveril de outubro.

Desse modo, a história que pretendo escrever e construir, seguindo Cervantes, é “[…] êmula do tempo, depositária de ações, testemunha do passado, exemplo para o presente e advertência para o futuro” (D. Quixote, parte 1ª, cap. 9)., sendo por isso, obviamente, que só desejo ser historiador, se puder ser a própria justiça da História, de que fala Vargas Vila, em seu “Libre Estética”, tendo consciência, portanto, de que existe história oficial, mentirosa, vergonhosa; global, direcionando pensamento único; nacional, colocada em xeque; “dos Annales”, teórico-erudita; “nova”, de muitos pais; “em migalhas”, cheia de especificidades; das mentalidades, privilegiando a vida privada e o “movimento das sociedades”; das mulheres, já uma prática estabelecida na maior parte do mundo; oral, do renomado expoente da história africana, Jan Vansina; “escolar”, como disciplina chata, repleta de datas; folclórica, de Troncoso e arco-da-velha; dentre muitas outras, chamando-me a atenção a ecologia e a história “vista de baixo”, trazendo-me a possibilidade de descobrir o “racismo ecológico” e a ideia de “explorar” e abordar a história do ponto de vista do soldado raso, do brinquedo de criança, do cabaré de luz vermelha e da cortina azul. Sem essa acepção, é possível que não tivesse escrito “Sombra dos quilombos” (1974), “Mineiros: memória cultural” (1980), “Conflito de limites Goiás Mato Grosso” (1981), “Traços da história de Mineiros” (1984), “Racismo à brasileira: raízes históricas”, “Parque das Emas: última pátria do cerrado”, “Retrospectiva histórica de Mineiros”, “Advocacia: engenho e arte” e “Quilombos do Brasil central: violência e resistência escreva”, tese de mestrado na UFG.

Preocupa-me, ainda, prezados senhores, o fato de viver um tempo do “aqui e agora”, ansioso e de difícil realização pessoal, Cecilia Meireles a sentenciar que “A felicidade não existe, existem apenas momentos felizes”. Essa felicidade, de sentido meramente consumista, descaracterizou a História, em sua função básica de explicar suas origens, perdendo, por conseguinte, seu elo com o passado. Acontece que a “mudança” que nos rodeia é tão grande, que a própria mudança está mudando, sendo uma delas o modo como pensamos sobre o tempo. Mesmo em Goiás, a passo agrário, essa mudança é acelerada e visível, nos deixando a impressão de impaciência e desilusão, por não termos certeza de viver uma ruptura histórica, embora não se possa negar a formação de uma sociedade civil mundial, desafiando fortemente os estados nacionais. Enquanto isso, as novas gerações querem resolver os problemas sem referências do passado, como se a história pudesse ser um mero produto de consumo, sem senso de continuidade e só pudesse existir num perigosos “presente permanente”, de que alerta o grande historiador britânico Eric Hobsbawam. O que esse Instituto poderia fazer para reciclar o pensamento das novas gerações, vítimas do consumismo que massifica e aliena? Que adianta o avanço tecnológico, que não se interessa pelo passado? Como ficaria a “identidade goiana”, sem a referência do seu passado?

De resto, ainda sem esquecer a fala do sentimento e a mensagem do coração, quero agradecer de modo especial ao escritor, poeta Geraldo Coelho Vaz, digno presidente da Academia Goiana de Letras, que ora me recepcionam, revelando generosas considerações a meu respeito, difíceis de as merecer. Muito obrigado. Aos membros desse Instituto, a minha gratidão e o meu respeito. Saibam o quanto sou uma pessoa carente de conhecimento. A Mineiros, onde, lendo o filosofo Nietzsche e o romancista Leon Tolstoi, compreendi a importância dos que escrevem sobre sua aldeia. Vou continuar advogando, lecionando, pesquisando e escrevendo, as atividades que aprecio.

 

(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, Ubego, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM – [email protected])


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