Do problema do multiculturalismo estadunidense
Redação DM
Publicado em 30 de junho de 2017 às 23:40 | Atualizado há 8 anos
Com o fim das duas grandes guerras, os Estados Unidos da América ganharam destaque no contexto internacional, possibilitando sua autopromoção como um lugar no qual a vida poderia ser como nos filmes de Hollywood. A venda desse american way of life, como ficou conhecido, teve o timing perfeito da modernidade globalizadora associada às forças de mercado transnacionais, o que, invariavelmente, produziu um fluxo intenso de migração (devido ao fascínio pela proposição vendida) em direção a esse país.
É nesse ambiente de diversidade cultural criada a partir do fluxo migratório — legal ou ilegal — que propostas acerca da melhor forma de convivência tornam-se cada vez mais comuns e necessárias. E, dentre as várias propostas, duas se destacaram. A primeira é conhecida como fundamentalismo universal, a qual, mesmo tendo perdido a sua força no ambiente político estadunidense após o rótulo de neocolonialismo ou mesmo intolerância, ainda consegue encontrar espaço em políticas ditas educacionais ou de integração social.
Segundo tal ideia, a alteridade deveria ser incorporada ao grupo dominante como uma espécie de continuação do darwinismo social, o que se traduz em erradicação das diferenças. Não é necessário dizer que a proposta do fundamentalismo universal foi taxada de extremista e que, muito rapidamente, deixou de ter grande representação significativa, ainda que nunca tenha se extinguido por completo.
Já a segunda proposta é amplamente aceita, mesmo dentro das chamadas elites culturais, e vem ganhando cada vez mais força e defesa disfarçada de respeito à pluralidade de culturas, artes e formas de vida. A ideia citada ficou conhecida no ambiente da modernidade como multiculturalismo e baseia-se na proposição de que as diferenças entre povos devem ser respeitadas simplesmente por serem diferenças.
O multiculturalismo não só se aplicaria aos diversos grupos étnicos que fizeram a migração para os Estados Unidos da América como também para os chamados nativo-americanos e grupos de representatividade minoritária, como os amish, de forma que toda cultura fosse ‘preservada’ de forma integral, mantendo, assim, a ideia de que toda e qualquer cultura deve ser ‘protegida’ da modificação a qualquer custo.
Nascem dessa perspectiva, portanto, dois grandes problemas sociopolíticos, que, criados pela própria natureza do multiculturalismo, acabam por contradizê-lo. O primeiro grande problema do multiculturalismo estadunidense relaciona-se à proposição da coexistência pacífica entre as diversas culturas. Para que semelhante empreendimento possa ter sucesso efetivo, são necessários pontos em comum com os quais diferentes culturas possam trabalhar ou, em outras palavras, um diálogo entre as culturas sobre o mérito de algumas diferenças.
Isso não significa aculturação, pois a valoração seria feita com base em pontos comuns da moralidade das diversas culturas apenas para que pontos da vida cotidiana melhorem, compreendendo que o multiculturalismo, ao propor o respeito e a preservação das diferenças por serem tais, acaba por impedir tal diálogo, estratificando ainda mais uma sociedade já muito opressiva e dividida.
Sem pontos em comum — ou mesmo abertura para que algumas modificações (aceitas por ambos os lados) possam ocorrer para facilitarem o convívio real entre as diferentes culturas —, o diálogo passa a ser impossível, e o ‘respeito’ proposto pelo multiculturalismo torna-se ‘tolerar’ o diferente, nunca o aceitar por completo ou fazê-lo parte integrante da sociedade, mas sim o isolar em guetos culturais. Por conseguinte, não há convívio dentro do multiculturalismo, apenas um estado latente de guerra civil.
O segundo grande problema está diretamente relacionado ao primeiro, em uma ligação de causa e efeito. Uma vez que se tem uma sociedade cada vez mais estratificada, portanto, dividida, é mais fácil de governar-se, ainda que aprovando leis das quais a sociedade desgoste ou com atos considerados negativos e ilegítimos, porque, claro, a opinião pública estará difusa e dispersa ante as questões culturais não resolvidas, vide exemplo do Obamacare, proposta com diferenças enormes de aceitação em diferentes grupos étnicos.
Outro desdobramento do segundo problema do multiculturalismo estadunidense é a manutenção da desigualdade social, que, pelo mesmo princípio, deixa de ser percebida pela sociedade total quando ela divide-se nas questões de cultura. Nesse caso, a alienação figura como algo ainda maior quando não existe nem sequer a percepção de pertencimento em um grupo maior, o grupo proletário.
Não é difícil notar como o multiculturalismo favorece algumas elites e, consequentemente, passa a ser amplamente defendido no sistema estadunidense de sociedade — nem mesmo é difícil observar como pode ser apelativo em um primeiro momento, sem uma visão mais aprofundada do tema, sendo fácil angariar ‘fiéis à causa’.
Ainda sim, muito desenvolvimento e diálogo são necessários até que se possa dizer que os Estados Unidos da América são capazes de lidarem, da melhor maneira possível, com as questões de identidade cultural dos mais diversos povos que hoje vivem em seu território. Dentre os desafios impostos pela discussão da convivência, estão o da percepção correta da ação e as guerras de reconhecimento, problemas, vale ressaltar, desenvolvidos dentro do multiculturalismo ou como ocorrência relacionada a ele.
O problema da percepção correta da ação trata da não generalização de ações individuais como ações do grupo étnico, sendo essa uma ocorrência comum na vida cotidiana estadunidense, com negros sendo acusados de maneira geral por ação de indivíduos ou mesmo grupos menores.
Já as guerras de reconhecimento são a manifestação da guerra latente em que o multiculturalismo colocou a sociedade estadunidense, pois transformam as diferenças em valores absolutos no contexto da autorrealização, sob o pretexto de justiça social. Nesse caso, a violência praticada entre grupos étnicos é esperada.
(Giulliano Molinero, estudante de Relações Internacionais na Universidade Católica de Brasília)