Opinião

Dos novos navios negreiros

Diário da Manhã

Publicado em 9 de agosto de 2018 às 00:30 | Atualizado há 7 anos

Nes­ta épo­ca de ve­lo­ci­da­de das co­mu­ni­ca­ções vir­tu­ais, che­ga-me às mãos, via zap-zap, um po­e­ma em ita­li­a­no de Ser­gio Gut­til­la, co­mo um gri­to de de­ses­pe­ro de quem vê le­gi­ões de cri­an­ças com fa­mí­lias ex­pul­sas da pró­pria pá­tria, sen­do lan­ça­das ao mar e flu­tu­an­do à de­ri­va, em bar­cos sem des­ti­no. Se­gue o tex­to que tra­du­zo em por­tu­guês:

 

NÃO É TEU FI­LHO

1.

Se fos­se teu fi­lho, en­che­rias o mar de na­ves, com qual­quer ban­dei­ra, e que­re­rias que to­dos jun­tos, aos mi­lha­res, fi­zes­sem uma pon­te pa­ra fa­zê-lo atra­ves­sar. Cui­da­do­so, não o dei­xa­ri­as ja­mais so­zi­nho. Fa­rias som­bra pa­ra não dei­xar que o sol lhe quei­mas­se os olhos. E o co­bri­ri­as pa­ra não dei­xá-lo ba­nhar-se pe­los ja­tos de água sal­ga­da.

2.

Se fos­se teu fi­lho, te lan­ça­rias ao mar e ma­ta­ri­as o pes­ca­dor que não em­pres­ta sua bar­ca. Gri­ta­ri­as pe­din­do aju­da e ba­te­rias às por­tas dos go­ver­nos pa­ra rei­vin­di­car a vi­da.

3.

Se fos­se teu fi­lho, ho­je es­ta­ri­as de lu­to e odi­a­rias o mun­do, odi­a­rias os por­tos chei­os de na­ves atra­ca­das. Odi­a­rias quem as dei­xa pa­ra­das e dis­tan­tes e a um só tem­po, aba­fan­do teus gri­tos com a água do mar.

4.

Se fos­se teu fi­lho, os cha­ma­ri­as de co­var­des e de­su­ma­nos e lhes cus­pi­ri­as no ros­to. E de­ve­ri­am con­ter-te, se­gu­rar-te, blo­que­ar-te, pois que­re­rias que­brar-lhes a ca­ra e afo­gá-los to­dos no mes­mo mar.

5.

Mas fi­ca tran­qui­lo, na tua té­pi­da ca­sa. Não é teu fi­lho, não é teu fi­lho. Po­des dor­mir tran­qui­lo e, so­bre­tu­do se­gu­ro. Não é teu fi­lho. É so­men­te um fi­lho da hu­ma­ni­da­de per­di­da, da hu­ma­ni­da­de sór­di­da, que não faz ru­mo­res. Não é teu fi­lho, não é teu fi­lho. Dor­me tran­qui­lo. Se­gu­ra­men­te não é teu fi­lho.

 

A VOZ DOS PO­E­TAS

An­tes ou­ví­a­mos a voz dos pro­fe­tas, ago­ra ou­ça­mos a voz dos po­e­tas. São vo­zes sen­sí­veis que cla­mam no de­ser­to. Mas eis que os po­e­tas são co­mo pro­fe­tas de­sar­ma­dos, de­nun­ci­an­do as ma­ze­las do mun­do, em que a es­cra­vi­dão e as de­si­gual­da­des so­ci­ais são a mai­or ver­go­nha dos tem­pos atu­ais. Re­por­te­mo-nos tam­bém aos du­ros tem­pos da es­cra­vi­dão no Bra­sil em que se er­gueu a voz por­ten­to­sa de Cas­tro Al­ves de­nun­ci­an­do as ce­nas dra­má­ti­cas e de­su­ma­nas que se ve­ri­fi­ca­vam nos po­rões dos na­vi­os ne­grei­ros. E o nos­so po­e­ta abo­li­cio­nis­ta bra­da­va:

“Fa­ta­li­da­de atroz que a men­te es­ma­ga!… / Ex­tin­gue nes­ta ho­ra o bri­gue imun­do. / O tri­lho que Co­lom­bo abriu na va­ga / co­mo um íris no pé­la­go pro­fun­do!… / Mas é in­fâ­mia de­mais!… da eté­rea pla­ga / le­van­tai–vos he­róis do No­vo Mun­do… / An­dra­da! ar­ran­ca es­se pen­dão dos ares!… / Co­lom­bo! fe­cha a por­ta de teus ma­les!…”.

 

DAS PO­TÊN­CIAS E
CO­LÔ­NI­AS

O mun­do já vi­veu a épo­ca das gran­des na­ve­ga­ções e des­co­ber­tas, bem co­mo das gran­des in­ven­ções de­sen­vol­vi­das em pro­vei­to da ci­ên­cia e da tec­no­lo­gia, com van­ta­gens pa­ra a eco­no­mia e a ex­pan­são ter­ri­to­ri­al dos paí­ses do­mi­na­do­res, até che­gar à glo­ba­li­za­ção atu­al. Tu­do pa­re­ce co­me­çar de no­vo, di­vi­din­do-se os po­vos (e não uni­fi­can­do), di­mi­nu­in­do-se a ri­que­za (e não mul­ti­pli­can­do). Res­ta cla­ro que a hu­ma­ni­da­de con­ti­nua de­su­ma­na em bus­ca de com­pe­ti­ção na al­deia glo­bal (no di­zer de McLu­han) e de so­bre­vi­vên­cia das es­pé­ci­es mais for­tes (co­mo di­ria Darwin).

An­tes co­mo ago­ra, fo­ram sem­pre os paí­ses do­ta­dos de me­lho­res tec­no­lo­gi­as (co­mo o fo­ram an­ti­ga­men­te, Por­tu­gal e Es­pa­nha) os qua­is sin­gra­ram os ma­res pa­ra ex­pan­dir seus do­mí­nios. Já em tem­pos atu­ais, Es­ta­dos Uni­dos e Rús­sia li­de­ra­ram a com­pe­ti­ção de vi­a­gens es­pa­cia­is pa­ra al­can­ça­rem ob­je­ti­vos mais am­bi­cio­sos, co­mo se nos­so pla­ne­ta Ter­ra já não bas­tas­se pa­ra sa­tis­fa­zer os an­sei­os da hu­ma­ni­da­de. Nes­se en­fren­ta­men­to, foi de­sas­tro­sa a des­tru­i­ção atô­mi­ca das ci­da­des ja­po­ne­sas de Na­ga­saki e Hi­ros­hi­ma (1945) re­du­zin­do o ar em pó, a ter­ra em pó, o pão em pó, o pó em pão, na bo­ca do ho­mem vão.

Em ple­na era mo­der­na pre­do­mi­nam po­lí­ti­cas ex­pan­sio­nis­tas das no­vas po­tên­cias mun­di­ais, ago­ra vol­ta­das pa­ra a ex­plo­ra­ção das no­vas co­lô­ni­as ter­ri­to­ri­ais mais co­bi­ça­das den­tro da al­deia glo­bal. Des­ta­que­mos o Bra­sil e a Áfri­ca, paí­ses con­ti­nen­tais do­ta­dos das mai­o­res ri­que­zas na­tu­ra­is que atra­em a am­bi­ção dos no­vos do­nos do mun­do. Es­ta­mos ven­do de vol­ta a fro­ta dos na­vi­os ne­grei­ros. Mas ao in­vés de im­por­ta­rem es­cra­vos em fun­ção da mão de obra, ex­pul­sam-nos de seu pró­prio ter­ri­tó­rio na­tal pa­ra os trans­for­ma­rem em no­vos pe­re­gri­nos, vis­tos co­mo res­tos da hu­ma­ni­da­de. Vol­tan­do a Itá­lia, ou­ça-se ain­da a voz de Cí­ce­ro, o cé­le­bre ora­dor ro­ma­no: “Oh tem­po­ris! Oh mo­res!”.

 

(Emí­lio Vi­ei­ra, pro­fes­sor uni­ver­si­tá­rio, ad­vo­ga­do e es­cri­tor, mem­bro da Aca­de­mia Go­i­a­na de Le­tras, da Uni­ão Bra­si­lei­ra de Es­cri­to­res de Go­i­ás e da As­so­cia­ção Go­i­a­na de Im­pren­sa. E-mail: evn_ad­vo­ca­cia@hot­mail.com)


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