É lamentável, mas as bibliotecas particulares vão desaparecer
Redação DM
Publicado em 28 de junho de 2017 às 00:16 | Atualizado há 8 anos
A importância de bibliotecas é inquestionável, merecendo de muitos estudiosos até mesmo a afirmativa de um mundo diferente se não tivesse sido queimada a Biblioteca de Alexandria. Revendo um pouco de Historia, Alexandria está localizada bem ao norte do Egito, fundada por Alexandre, o Grande, no século IV a.C. No seu apogeu tinha uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, que era o Farol de Alexandria. A sua biblioteca foi uma das maiores da antiguidade, possuindo os melhores trabalhos intelectuais de seu tempo, disponibilizando obras traduzidas para o grego e diversas outras línguas. Tudo que se referia ao conhecimento da humanidade, até aquela época, era colecionado na Biblioteca de Alexandria, que chegou a reunir quase um milhão de manuscritos. Infelizmente, a ignorância do ser humano resultou no incêndio do grande acervo, o que pode ser considerado o maior crime contra a cultura humana.
Ninguém desconhece a importância das bibliotecas. Todavia, justamente o avanço tecnológico e cultural irá acabar com a bibliotecas particulares. Não as públicas, pois estas devem continuar a existir, logicamente inovando e ampliando seu funcionamento para vídeos e sistema digital, permitindo a consulta à distancia, o que já está acontecendo. Porém, as bibliotecas particulares estão em extinção.
Todas pessoas versadas no assunto se lembram do nome José Mindlin, que formou a maior biblioteca particular do Brasil. José Mindlin foi empresário, secretário estadual de cultura, ciência e tecnologia de São Paulo e membro de diversos conselhos de instituições culturais. Foi também membro da Academia Brasileira de Letras. A biblioteca formada por José Mindlin ao longo de sua vida, versava sobre estudos brasileiros, história do livro e da leitura, tecnologia do conhecimento, humanidades e preservação, conservação e restauração do livro e do papel. A sua biblioteca chegou ao total de 32,2 mil títulos que correspondem a 60 mil volumes, aproximadamente. A coleção foi doada pela família Mindlin à USP em um gesto de extrema generosidade para com a nação. Mas José Mindlin foi um caso especial. Ele dedicou mais de oitenta anos colecionando livros, notadamente os raros. As pequenas bibliotecas não encontram nem mesmo quem quer recebê-las em doação. E quando encontram, apenas uma pequena percentagem do total de livros é aproveitada. Formar um biblioteca fica caríssimo, e somente pessoas de grande poder aquisitivo conseguem mantê-las.
Todos profissionais de nível superior devem possuir um mínimo de livros, para bem exercer suas profissões. No caso de Direito, a exigência é aumentada por questões óbvias. Vivi de perto tal situação. Quando estudante, tinha dificuldades financeiras para adquirir livros. Após concluir o curso, foi necessário adquirir alguns livros indispensáveis ao exercício de qualquer profissão na área jurídica. Com o tempo precisei de mais espaço, e foi com desagradável sensação que verifiquei serem dispensáveis mais da metade dos livros, porquanto já ultrapassados. Em Direito acontece muito de leis novas tornarem totalmente dispensáveis livros relativos às leis revogadas. Não se deve ignorar que existem verdadeiras jóias preciosas que não envelhecem com o tempo, citando como exemplo uma coleção minha, Tratado de Direito Privado, de Pontes de Mirando, 60 volumes. Mas a maioria dos livros pode ser descartada, não trazendo qualquer prejuízo para o exercício profissional.
Voltando ao tempo que eu era estudante de Direito, um professor sempre comentava a necessidade de se formar uma biblioteca jurídica. Na época a maior e melhor biblioteca jurídica em Goiás era do advogado Adail Lourenço Dias, em Anápolis. Foi propiciada uma viagem de estudantes para conhecer a biblioteca, da qual participei. Desconheço o que aconteceu com a referida biblioteca. Comentava-se, e não sei se é verdade, que a segunda maior e melhor biblioteca jurídica, particular e goiana, era do advogado Alaciel Prado. Esta foi adquirida pela OAB-GO, servindo como fonte de pesquisas para estudantes de Direito. Como não poderia deixar de ser, está em constante renovação, ampliando seu acervo.
O mundo mudou. Não para melhor ou pior, mas simplesmente mudou. Hoje os advogados precisam de um mínimo de livros para bem exercer a profissão. Por outro lado, devem estar devidamente aparelhados com ferramentas que permitam acompanhar toda a evolução tecnológica no campo jurídico. Isto otimiza o tempo gasto na elaboração de peças jurídicas. Não adianta argumentar que antes era melhor, porque se estudava mais o tema em pauta. Tudo mudou e não tem retorno, porquanto o avanço tecnológico é irreversível. Quando eu era Presidente da OAB-Goiás aconteceu iniciativa do Conselho Seccional em discutir uma possível forma de extinguir o arquivo administrativo por meio de microfilmagem. Acontece que era muito caro e não se sabia o que iria acontecer com os microfilmes após determinado tempo. Felizmente veio a digitalização. Mesmo assim, o futuro é uma incógnita. Como será daqui a cem anos? Ninguém sabe.
As universidades e o poder público devem manter bibliotecas especializadas e constantemente atualizadas. Mas o mesmo não se pode dizer das bibliotecas particulares, pois quando falece o formador do acervo, os livros herdados, ao contrário de constituir patrimônio, passam a ser verdadeiro problema para os familiares. Por uma questão de respeito à memória do criador da biblioteca, normalmente o pai, os filhos ou mesmo a viúva procuram fazer doação. Se houver algum herdeiro da mesma área de atividades, claro que ficará ele com a biblioteca. Caso contrário, não haverá para quem doar. Tive essa experiência no meu próprio escritório. Desfiz de mais da metade dos livros da pequena biblioteca, porquanto nenhuma serventia havia para os filhos, apesar de advogados. Até mesmo a doação, para serem reciclados, enfrentou dificuldades e gastos. Uma coleção, Enciclopédia Saraiva de Direito, de 78 volumes, não tive coragem de dispor dela, pois foi adquirida com muito sacrifício. Porém, é possível que fazem mais de quinze anos que não consulto qualquer volume da coleção, pois é mais fácil e mais rápida a consulta ao Google.
Considerando que os tempos mudaram, algumas providências podem ser adotadas, evitando o aumento gradativo dos livros, necessitando de mais espaço para novos, o que é difícil nos dias atuais. Uma solução que pode ser adotada refere-se aos romances. Excluindo aqueles que, por algum motivo sentimental, não se pretende dispor, o melhor será ler e doar, pois é quase regra “se emprestar não volta”. Ler um livro e guardá-lo na biblioteca para nunca mais consultá-lo chega a ser egoísmo, vez que acontece uma propriedade e posse sem nenhuma finalidade e que poderá resultar em problemas futuros. Aliás, o livro deve ser partilhado e não arquivado para sempre.
Conheço casos concretos de ótimas bibliotecas, não apenas de livros jurídicos, que os herdeiros pretendem doar a órgãos públicos mas não encontram quem quer. Queimar dói o coração. No futuro, livros físicos serão autênticas peças de museus. É lamentável, mas as bibliotecas particulares vão desaparecer.
(Ismar Estulano Garcia, advogado, ex-presidente da OAB-GO, professor universitário e escritor)