Educação: perdendo o pouco que fizemos
Diário da Manhã
Publicado em 30 de agosto de 2018 às 22:42 | Atualizado há 7 anos
O passado não deve ser evocado com intenções mistificadoras.
Sempre é possível encontrar alguém que se refira ao “seu tempo”, quando “tudo era melhor”.
A historiografia da educação brasileira tem registros de manifestações de docentes nas duas primeiras décadas da República nas quais despontavam falas lamentosas pelos descalabros daquele tempo presente e registravam nostalgias de um tempo em que “tudo era melhor”.
Essas considerações são necessárias para que a comparação a seguir não seja interpretada como suspiro nostálgico, mas que seja entendida a partir de seu propósito crítico.
Em relação ao universo educacional brasileiro, notícias sombrias provenientes de diversos setores têm se encontrado e esse encontro tem produzido expressivo desalento.
No mesmo contexto em que pesquisa divulgada pela ONG Todos pela Educação mostra que mais de 50% dos professores se sente desvalorizado (num universo profissional em que 78% escolheu a profissão por afinidade), a mídia noticia que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019 não alocou os recursos necessários para que se possa cumprir (e manter) o Plano Nacional de Educação (PNE).
Se já em 2016 percebíamos atraso na concretização das metas traçadas pelo PNE, a partir de agora podemos ter dúvidas consistentes a respeito de sua continuidade.
Há uma perda já contabilizada de R$ 5 bilhões para a área que demonstra que vamos fechar o triênio 2015-2018 com o impressionante corte de R$ 14 bilhões.
Concretamente, estamos desmontando e sucateando o que fizemos, lembrando de antemão que nada do que fizemos sequer se aproximou do ideal, do completo, do suficiente.
A menção inicial aos riscos de se projetar um passado irreal para enfrentar as agruras do atual momento é um cuidado analítico, mas sem qualquer receio de produzir mistificações é possível sim, concretamente, lamentar o fato de que tínhamos, em passado recente, mais garantias e compromissos do que hoje temos.
Considerávamos que algumas pautas já estavam consolidadas e que se tratava de enfrentar a complexa tarefa de avançar.
O que temos agora demonstra que a percepção de consolidação se esvaziou, ficou nesse passado recente e, neste momento, vertiginosamente “tudo o que é sólido desmancha no ar”, sem que uma nova ordem se projete a partir dos escombros dessas ruínas.
O número significativo de professores que manifesta percepção de desvalorização é alto e crescente e essa situação se agrava quando essas informações de ordem orçamentária demonstram o que é e o que não é prioridade neste país.
Para mais uma vez mencionar o passado, convém lembrar um “encontro” entre os temas valorização e orçamento ocorrido no final de década de 1950.
Naquele momento, pesquisas financiadas pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), órgão público idealizado e estruturado por Anísio Teixeira, proporcionaram a publicação de inúmeros textos que analisavam, entre outras questões, a opinião do professor.
Uma dessas pesquisas, em especial, chamou atenção porque inicialmente deu publicidade a um aspecto “assustador”.
Antropólogos e sociólogos do CBPE registraram com perplexidade o comportamento de muitos pais que entregavam seus filhos à escola e se dirigiam às professoras e aos professores sinalizando certa “cumplicidade”, visível, por exemplo, quando muitos afirmavam: “se precisar, por favor, repreenda…”.
Se por um lado esse tipo de manifestação ofereceu a estudiosos da infância elementos para argumentar a condição vulnerável da criança dentro da lógica adultocêntrica de nossa sociedade, por outro lado a própria manifestação dos professores entrevistados naquelas pesquisas oferecia um contraponto muito interessante.
Afirmavam que não entendiam tais manifestações como “licença para reprimir ou maltratar”. Entendiam tratar-se de manifestação pública de valorização da escola e do professor.
As classes trabalhadoras, diziam, sustentam a valorização da escola e do professor concedendo uma partilha simbólica na qual até o universo da autoridade familiar (sempre complexo e reivindicado, por vezes, com veemência) reconhecia no professor aquele que, dentre outros, era digno da mais expressiva valorização.
Tais pesquisas mostravam um forte encontro das expectativas familiares e da escola em relação às garantias governamentais para que a ação do Estado estivesse sempre pronta a garantir e valorizar a educação e seus protagonistas.
Sabemos que a tragédia do golpe civil-militar de 1964 enterrou no passado os projetos de Anísio Teixeira.
Percebemos também que a tragédia que vivemos neste momento, claramente perceptível nos expedientes do teto de gastos e dos “ajustes” que não cessam de chegar, já transformou um passado recente em um tempo a ser rememorado com força e pesar.
Concluímos enfaticamente que contávamos com garantias, compromissos e reconhecimentos que estão se esvaindo.
A percepção dos professores tem um aspecto bastante parecido com outros dramas laborais suscitados recentemente.
Um dos aspectos decisivos que a pesquisa revelou em relação à insatisfação foi o cotidiano dos professores que têm pequena carga horária e que, por isso, vivem condições instáveis e sub-remuneradas, numa rotina itinerante que o obriga a permanecer procurando quem possa garantir seu sustento.
Mas não é esse o espírito da reforma trabalhista recentemente promulgada?
A mídia não divulgou muito recentemente que 25% dos trabalhadores empregados (pois são muitos os desempregados) já estão sobrevivendo nas regras do trabalho intermitente?
A pesquisa sobre a desvalorização dos professores é publicada no mesmo contexto em que a LDO demonstra que o Plano Nacional de Educação parou.
Não são duas notícias que se encontram. Dizem respeito a um fato só e são, por isso, capítulos de uma mesma trama. Trama essa que faz perceber que o pouco conquistado por nossas muitas lutas ficou no passado.
(Gilberto Alvarez, diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber)