Em meio às nuvens
Redação
Publicado em 24 de julho de 2015 às 23:53 | Atualizado há 10 anosPaulo Martins,Especial para Diário da Manhã
De frente para o imenso lago, deitei-me na areia fria da manhã. Fiquei olhando para o céu cheio de nuvens. Um amanhecer azul irradiava o horizonte. Os ventos, apesar de serenos, carregavam lentamente as nuvens alvas, brancas como o puro algodão. Em ritmo de uma dança suave, as nuvens ganhavam formas diversas, enriquecendo minha imaginação.
Com os olhos enfeitiçados no céu, pensava na desmedida distância que separava a praia em que eu estava e a rua que eu brincava quando criança. A mesma rua que passava o homem do algodão doce, vendendo ou trocando por garrafas aquelas guloseimas em forma de nuvens brancas ou coloridas, tornando aquelas tardes mais doces e gostosas.
No fabuloso mistério do formato das nuvens, elas são capazes de contar histórias, desvendar segredos obscuros. Quando criança, eu ficava horas e horas deitado na grama, olhando as nuvens, tentado decifrar o que traziam de revelador em seu formato. Naquele tempo, eu via figuras da natureza, limoeiros, flores de jasmim, coelhos, borboletas, aves. Agora, eu vejo imagens que rompem o natural, pessoas que não estão mais entre nós, imagens de pessoas que o tempo implacavelmente levou, sem nos consultar ou pedir permissão.
Em uma das nuvens, vejo eu e meu melhor amigo, Evinho, sentados no piso vermelho da sala de uma casa que já não existe mais, com algumas pessoas que já se despediram deste mundo. Brincamos de bater figurinha de chiclete Ploc e Ping Pong. A televisão exibe a novela Jerônimo, o Herói do Sertão. Ouço minha segunda mãe, dona Jandira, com sua voz melodiosa e doce, nos chamando para almoçar, arroz com carne de porco frita.
Outra nuvem passa lentamente, nesta consigo ver Tereza, moça responsável por me levar à escola, nos meus primeiros anos de estudo. Pouco mais velha que eu, era encarregada de não deixar os meninos maiores tomar meu lanche, pão amanhecido, torrado na frigideira untada com óleo. Tereza era minha amiga, vizinha, crescemos praticamente juntos. Casou nova de mais. Numa manhã de segunda feira, enquanto eu escovava os dentes, foi encontrada, no quarto de sua casa, brutalmente assassinada, esfaqueada pelo marido, vítima de um crime passional.
O vento traz outra nuvem, que para por alguns segundos, parece olhar pra mim. Fixo os olhos, vejo meu pai, num dia de semana qualquer. Debruçado na janela de sua sapataria, com os braços cruzados, as mãos apoiando o queixo, sorri e cumprimenta as pessoas que passam pela Avenida C11.
Aproximo-me do meu pai, peço alguns cruzeiros para comprar um Baré tutti-frutti. Ele coloca as mãos no bolso, junta os trocados, me entrega. Compro o refrigerando no Supermercado Transamazônica. Com um prego, meu pai fura a tampa de metal, dá o primeiro gole, me entrega a garrafa, saio descalço pela rua ainda de chão. Na rua, passa o homem do algodão doce, leva dentro de sacos as suas nuvens coloridas, gritando, “vendo, troco por garrafas”.
Na praia em que eu estava, o Sol ganhou altura, trouxe o calor, seus raios incomodaram minha visão. Pisquei o olho, voltei a olhar para o céu. As nuvens, aos pouco, foram levadas pelos ventos, que ficaram mais fortes. Não vi mais nada, a não ser um imenso horizonte azul.
(Paulo Martins é professor e escritor, pós-graduado em linguística aplicada na educação)