Opinião

Encafifado a zói

Diário da Manhã

Publicado em 26 de agosto de 2016 às 02:14 | Atualizado há 9 anos

– Como foi ontem, Fulano?

– Nem te conto, Sicrano. Ontem pesquei a zói…

Sicrano ficou pensativo repentinamente. Não pela resposta. Enquanto Fulano descambava a contar minúcias da pescada – cobra que veio no anzol, tantas traíras de dois palmos, uma que escapuliu devia ter uns três, anzol arrebentado, vara quebrada –, Fulano deitou a cabeça no balcão e ficou cismado. O boteco estava vazio, a mesa de sinuca parada. Uma televisãozinha pendurada no canto estava ligada à toa: mostrava gente pulando nas Olimpíadas. Se fosse jogo de bola… Um ou outro menino entrava para comprar salgadinho e saía afobado rasgando as embalagens e quebrando entre os dentes os flocos amarelos. E Fulano não parava de falar. Quando Sicrano, enfim, ergueu a cabeça, sungando a sobrancelha, e fez menção de abrir a boca para dizer algo, Fulano ergueu a voz, como se lembrasse de contar algo muito precioso.

– E bebi cerveja a zói, viu! Vou te contar uma coisa…

Sicrano, desacorçoado, pousou a cabeça novamente sobre o braço estendido no balcão, suspirou deixando o ar, de saída, assobiar pelo nariz. E permaneceu escutando, ainda mais cismado que antes. Tantas caixinhas, de marca tal é melhor, mas aquela outra, bem geladinha, não é tão ruim assim. Fulano seguia tagarelando de escumar o canto da boca. Mexendo com as mãos, às vezes se levantava do tamborete para remedar os amigos, um ou outro que tombou o calhau, fez feio de tanta bebura. E riria solitário, não fosse eu parado na porta, atento a tudo que dizia.

Quando pensa que não, no meio do assunto, Fulano se levantou para ir ao banheiro. Foi e voltou ligeiro. Nem bem se sentou direito, Sicrano começou a contar tudo outra vez.

– Vou te falar, foi bom a zói ontem, viu Sicrano…

– Espera aí! – gritou Fulano. – Pescaria boa? Eu sei. Farra cem por cento? Certo. Tudo bacaninha. Ara, mas esse tal de “isso a zói”, que fala e repete, que diacho é isso?

Sicrano, com o cigarro por acender pendido no canto da boca, coçou a nuca e começou a piscar miúdo. Olhou para dono do boteco, mas esse estava ocupado rodeando um pano úmido para dar nos mosquitos sobre o balcão. Olhou para mim, buscando apoio. Se a expressão “a zói” não me era estranha, conceituá-la seria outros quinhentos. Aguardando de nós algum socorro diante da difícil questão levantada pelo amigo, ele apalpava os bolsos da calça, procurando o isqueiro. Agora ele quem se tornava pensativo.

– Uai, não sei explicar direito… Quando alguma coisa é boa absurdo… sei lá, a gente fala “a zói” – explicou Sicrano titubeando.

– Ah, bom! Pode continuar.

Enquanto Sicrano tentava, gaguejando, recomeçar, o Beltrano aqui, que participa passivamente do causo, foi quem mais se encucou com isso. Sem avisar, sai do boteco de fininho e fui embora queimando neurônio tentando desvendar o pequeno mistério. A zói. A olho. A olhos. A olhos vistos? A olhos vistos.  Isso! Deve ser isso! Abria já o portão de casa quando me ocorreu esse provável eureka, o único de minha vida. Não tive dúvida: voltei ao boteco a passos largos para informar Fulano e Sicrano sobre isso.

– …Então, Fulano, foi bom pra caramba… – contava Sicrano.

Engoli as palavras que eu levava prontas. E desfiz-me da empolgação. Murchinho, deixei novamente o boteco. Sicrano explicara do jeito dele. Dizer mais seria chover no molhado.

 

(Hailton Correa, agente prisional, graduado em Letras pela UEG de Inhumas e escritor. Contato: [email protected])

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