Enganosa natureza: o sertanejo, embora crédulo e servil, pode ser um monstro
Diário da Manhã
Publicado em 5 de outubro de 2018 às 22:38 | Atualizado há 7 anosQuem me lê semanalmente e toma conhecimento de causos e passagens ocorridas no sertão tocantinense, já formou uma concepção do sertanejo: crédulo, subserviente, humilde. Quando se fala em Camilo Canela, Maria Segurada, Antonhão Pé-de-Janta, forma-se um juízo aparentemente perfeito do nosso homem do mato.
Entretanto, apresso-me em adiantar uma outra faceta que vem completar o sertanejo, o crédulo, o supersticioso e ingênuo bariru: sua crueza, sua natureza malvada com os animais, praticando atos para nós considerados de extrema barbaridade. Não que seja de sua índole fazer o mal; é muito mais uma espécie de instinto de sobrevivência num sertão onde ele divide com a fauna o sustento da família.
É comum, comuníssimo ver-se a destruição de ninhos de pássaros pelos meninos sertanejos. No tempo do plantio, de parição do arroz e da colheita, o roceiro incumbe um dos meninos de vigiar a roça, de bodoque e baladeira em punho, espiando – e se possível matando – rolinhas fogo-apagou, maritacas, periquitos o pássaros-pretos, a fim de não darem prejuízo na roça. Os ninhos desses pássaros, quando encontrados, são sumariamente queimados e os filhotes mortos, como espécie de faxina antiecológica.
Certa ocasião – isto, há um bando de anos – estando na fazenda, um dos vaqueiros, por nome Carlos de Madalena, andou atirando numas guaribas que (dizendo ele) ameaçavam a roça de milho, quando se sabe que a guariba é uma nação de símio que não dá prejuízo, pois só come fruta do mato. E num raro acaso, a guariba ferida deixou escapar o filhote que carregava na cacunda. Eu estava por perto e decidi levar o macaquinho para casa. Era um animalzinho esperto, de natureza mansa, pois, mal saíra de seu “habitat”, já estava subindo-me aos ombros e apanhando restos de comida em minha não. Criado em casa, seguramente o macaquinho iria tornar-se um animal de estimação, com a vantagem de divertir-nos com as presepadas de natural equilibrista, um exímio assobiador e criador de inusitadas situações, com suas gatimônias.
Pois bem, ausentando-me por um dia para pescar na beira do Palmeiras, ao retornar não vi mais o macaquinho que já começara a estimar e que parecia já conhecer-me. Procurando por ele, soube que o menino do vaqueiro o matara com uma paulada e o jogara num buraco de cupim. Fui indagar a razão daquela malvadeza. E ele, como se tivesse feito uma vantajona deste tamanho, falou apenas que o matara porque os macacos, guaribas e bugios são danados pra dar prejuízo às roças, e quando ele crescesse iria dar prejuízo também. Inútil argumentar.
Assim, o sertanejo não titubeia em destruir esses animais, tidos por nocivos, no seu curto modo de ver.
Ouvi contar – e não boto pé na parede pra desacreditar – que nas rodeanças da nossa fazenda um camarada possuía uma cachorra comedeira de ovo. Como no mato o sertanejo divide sua criação de galinhas com as raposas, que as comem, e os teiús, que acabam com os ovos, é inconcebível que também um animal de dentro de casa também belisque sua parcela. Mas como o sustento é precário – o decomer é escasso e malmente dá pros racionais – cachorros e gatos tratam de buscar seu sustento de qualquer jeito: é a carniça, quando disputam com os urubus um naco de carne putrefata; é o resto de matalotagem, quando se sacrifica uma rês para ter carne sadia; é o ninho da galinha que bota no mato, pois a indolência do sertanejo não lhe abre os olhos para a necessidade de construir pelo menos um cercado para livrar as galinhas de um eventual ataque noturno de bicho do mato.
O sumiço dos ovos estava sendo debitado a esses bichos, até que um dia flagraram a cachorra magrela comendo ovos no ninho.
Aí, entrou em ação o instinto malvado do sertanejo. Não bateu na cachorra, sequer ralhou com ela, chamando-a com um estalar de dedos, vindo ela, abanando o rabo para roçar nas pernas de seu dono. Este ficou fazendo-lhe festa, enquanto a cachorrinha deitava e rolava de satisfação, usufruindo daqueles carinhos temporões.
Enquanto ele brincava com ela, como se aprovando sua irracional ação no ninho atrás da moita do quintal, na trempe fumegava a chocolateira, fervendo um ovo. E quando o borbulhar da água expulsava respingos fora da vasilha, ele pegou uma colher, tirou o ovo, abriu a boca da cachorrinha, que lhe trançava nas pernas inocente, e jogou lá no fundo o ovo quente, não sem antes segurar com força o focinho da miserável cadela, a fim de que não cuspisse fora o ovo com sabor de brasa.
Segundo ele, era para a cachorrinha nunca mais comer ovo. De fato, o pequeno e fiei animal jamais voltou a comer ovo, pois dali a poucos dias, sempre gemebunda e cortando o coração da gente, morreu de fome, pois as queimaduras da boca e de garganta não deixaram mais nem beber água.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras escritor, jurista, historiador e advogado. liberatopo[email protected])