Esse País ainda tem jeito, ainda dá tempo
Diário da Manhã
Publicado em 8 de dezembro de 2017 às 00:19 | Atualizado há 7 anos
A muito se aprende desde os bancos da graduação que a imparcialidade do juiz é pressuposto de validade do processo, devendo o juiz colocar-se entre as partes e acima delas, sendo esta a primeira condição, se não a mais importante, para que possa o magistrado exercer sua função jurisdicional e se alcançar a justiça, que vai além do direito. Este referido pressuposto diante de sua inexorável importância, tem caráter universal e consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo X: “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.”
A imparcialidade do juiz além de ser em seu ápice uma garantia de justiça para as partes é uma garantia constitucional e do próprio Estado democrático de direito já que este ao reservar para si o exercício da função jurisdicional, tem o correspondente dever de agir com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas, mantendo assim o eixo axiológico da isonomia.
O juiz doutra banda durante o processo de conhecimento vai deixando-se convencer intimamente, a respeito do que está sendo oferecido a ele nos autos, sempre com olhar critico e analítico tendo a objetivação de a decisão ser somente o resultado deste julgamento, pois é nela que ele irá fundamentar seu julgamento, demonstrar as motivações que o fizeram chegar a tal resultado.
Essa bela e falaciosa “teoria” pouco ou quase nada se aplica a “prática forense”. O que vemos aí a fora são nobres Julgadores cheios de verdades reais próprias em um jogo de chantagens e incertezas que contaminam o processo e a garantia de sua efetividade num todo. Nos corredores da justiça, sempre ouvimos falar um pouco mais de alguns atores desse teatro mais que outros, quando sabemos em qual “vara” caiu nosso processo a preocupação se torna não somente em colher e apresentar provas, escolher a melhor tese etc, mas sim em analisar as condutas anteriores do juiz, isso na vasta e pantanosa conduta criminal.
Neste diapasão, adentrando o terreno trabalhista não vinha sendo diferente até então, sempre estudando o caso e o juízo ao qual foi agraciado, mas por não ter atuado em todas as varas sempre aprendendo com cada uma delas fui me adaptando aos poucos. Ouvi sempre dizer horrores da décima vara do trabalho desta capital, bochichos do tipo “juiz punho pesado, não é um ser humano, muito rigoroso para não dizer sem coração”, vinha com uma bagagem já cheia de expectativas. Para minha surpresa ao ajuizar uma ação fui agraciada com a nobre surpresa de ser distribuída a tão temida décima vara.
A preocupação foi tão intensa ao ponto de fazer-me assistir uma audiência de instrução dias antes da que por mim foi patrocinada para entender melhor de que tipo de atuação se tratava. Para minha grata surpresa acredito ter sido presenteada com o melhor que podemos ter no sentido mais amplo que de mera expectadora, mas de eterna aprendiz. Enquanto se desdobravam os atos primários da tentativa de conciliação puder perceber naquele cenário advogados um tanto quanto preocupados em suas colocações, mas ao mesmo tempo meio perdidos quanto seus posicionamentos, parecia-me que o ambiente estava contaminado por algo que ainda não conseguia descrever e temia pelo pior.
Com a voz de um tom um tanto quanto firme o juiz presidente, Pedro Henrique Barreto, juiz da temida 10ª vara do Trabalho de Goiânia, inaugurou a audiência que seria de instrução e julgamento após longa tentativa frustrada das partes em acordar num tom sutil e intrigante de se analisar o lastro probatório. Durante toda explanação a parte do Reclamante alegou trabalho intrajornada, horas extras, pagamento por caixa dois, erros na escala dentre outras coisas. Por outro lado a parte ex adversa com uma tese totalmente contraria explana sobre a inconsistência das provas do caixa dois e seus supostos valores, a inexistência destes e de tudo alegado, como de praxe.
Partindo para a oitiva das testemunhas as do Reclamante que também eram por sua vez ex funcionários da Reclamada e já haviam sido testemunhas em outros processos de colegas, passaram a dizer com relação ao pagamento por caixa dois valores diametralmente opostos, enquanto um dizia que o valor era aproximadamente R$ 800,00 o outro afirmava que ele e o colegas nunca receberam menos de R$ 1,500.00 chegando a receber incríveis R$ 3.000,00 só de comissão em caixa dois tendo o reclamante postulado por R$ 300.00 mês. Logo as testemunhas da Reclamada com tese oposta e também ex-funcionários afirmavam que nunca ocorrerá tal pagamento a nenhum deles e de nenhum valor.
Até aquele momento a rotina era a de todos os dias, tese e antítese, então o ilustre MM. indignou-se com o teatro ali instalado e procedendo a contradita das testemunhas deu-lhes a oportunidade de expressarem mais uma vez qual seria a verdade e em suas palavras “arrumarem o que haviam dito”. Diante da impossibilidade de obriga-los a dizer a verdade relembrou que se mentissem sairiam dali presos, já que estavam em flagrante delito de falso testemunho pelo artigo 342 CP, dando-lhes a oportunidade da retratação e cientificando-lhes do que aconteceria caso continuassem com aquela encenação e já pedindo que fosse chamada a segurança e força policial. Neste memorável momento a advogada do Reclamante pediu para conversar com as testemunhas que atônicas com o que acontecia não esboçavam nenhuma reação.
Depois de terminar a audiência com um acordo muito menor que o pretenso no início na conciliação, alguns dirão que tem medo da 10ª vara, tão temida e amaldiçoada, eu no entanto saí aliviada de saber que embora o juiz seja um ser humano que tem seus valores e convicções e não tem condições por si só de ser totalmente imparcial vi ali diante de meus olhos o que tanto esperava a busca pela verdade, não a das partes nem tão pouco a dos autos mas sim a verdade real. Saindo dali estapafúrdia com o que tinha sido aquele momento que até então só conhecia das doutrinas, puder perceber que ainda tem jeito, basta começarmos quebrando nossos preconceitos e fazendo cada um apenas aquilo que deve ser feito, não aquilo que pode aquilo que dá, mas sim aquilo que deve ser feito, sem paixão pela causa, sem paradigmas exacerbados, independentemente de seu julgamento pessoal.
Neste sentido ensina Mauro Cappelletti que toda a problemática da responsabilização judicial deverá reduzir-se a um esforço no sentido de assegurar a melhor situação concreta para a atuação daqueles valores mais altos, ou seja, menos instrumentais, que se refletem nas normas fundamentais da “justiça natural”: a imparcialidade do juiz e a fairness processual e, consequentemente, o caráter tanto quanto possível “participativo”, e nesse sentido democrático, da função jurisdicional .
O juiz deve ser imparcial, mas isso não significa que deva ser neutro. Imparcialidade não significa neutralidade diante dos valores a serem salvaguardados por meio do processo. Não há violação ao dever de imparcialidade quando o juiz se empenha que seja dada razão àquela parte que efetivamente agiu segundo o ordenamento jurídico. Aliás, o que deve importar ao juiz é conduzir o processo de tal modo que seja efetivo instrumento de justiça, que vença quem realmente tem razão e foi somente isso que presenciei naquele dia fatídico.
Processo efetivo é somente aquele que atinge todos os seus objetivos, o que não acontece se o juiz está tolhido e tem as mãos amarradas, condenado a ser mero expectador de uma batalha muitas vezes desigual e que, sem sua intervenção, pode resultar na vitória de quem nenhum direito material tinha naquela hipótese.
Diante de todo explanado e grata pela surpresa, feliz com o aprendizado, e apesar de aquela não ter sido uma audiência da qual eu fui patrona me senti vencedora em 100% dos pedidos tendo certeza que ainda tem jeito para esse país.
(Vanessa Mariano, advogada criminalista com expertise em ciências criminais, pós-graduada de direito do trabalho e previdenciário, gestora em segurança pública)