Opinião

Façanhas do pensamento

Redação DM

Publicado em 27 de janeiro de 2017 às 00:58 | Atualizado há 8 anos

Já não me lembro bem quando ouvi pela primeira vez o aviso do compositor Lupicínio Rodrigues de que “o pensamento parece uma coisa à toa, mas (…) a gente voa quando começa a pensar”.

Verdade. O pensamento possui desenvoltura especial. Além de se movimentar na interioridade do tempo escarafunchando suas intimidades, às vezes reveste as lembranças de tamanha emoção, que as torna duradouras e insuperáveis. Creio ser essa a razão de eu já ter escutado muita gente dizer que quanto mais o tempo passa, pior fica.

Que o pensamento não aceita rédeas, é fato. Dono dos seus volteios, ele é independente, renitente, turrão mesmo. Basta surgir um pequeno motivo, som, cor, gesto, cheiro, que lá vem as suas insinuações. E pobre de quem ousa dizer que não quer mais pensar em alguma coisa. Logo lembranças brotam, intrometendo, cutucando, atazanando.

Em outras situações, elas levam o seu pensador para rumos diversos, tal como acontece nas conversas entre amigos. Principia-se com um assunto, depois uma palavra puxa outro, surge outro e outro, muitas vezes sem chegar ao final de nenhum.

E por falar em lembranças, confesso que tenho a ingrata mania de procurar motivos para entender o acontecimento de alguns fatos passados.

Logo eu, que bem sei que repensar histórias nem sempre é divertido ou prazeroso. Se apenas acertos voltassem à memória, seria ótimo. Entretanto, amiúde, precariedades, inquietações e desajustes também são revisitados. E quando isso acontece, não é nada bom.

Minhas lembranças mais doídas procuro afastar, dizendo: Pensarei nisso amanhã, como Scarlet O’Hara, a protagonista do filme E o vento levou. Porém, admito, esse teatro muitas vezes pouco adianta! Quando percebo, já estou a matutar justo no que me machuca.

Por isso, com convicção, bato no peito e afirmo que pensar também é perigoso. O pensamento tem grande poder e esse seu poder guarda propriedades alquímicas. Incontáveis vezes, o que era lembrança alegre, entristece. Vira saudade.

Mas hoje, já caminhando para o fim do primeiro mês de 2017, ano que, a meu ver, ainda será de revelações pouco animadoras, prefiro usufruir positivamente do meu pensamento. Já que ele possui incontestável ligeireza para me levar ao passado, basta um clique e lembranças já se colocam ao meu dispor. Como agora.

O ano, 1966. O mês, dezembro. Qual era o dia que já escurecia, não me lembro. Sei que chovia. Ora mais forte, ora chuva bem fina. Foi quando chegou em minha casa um amigo da família, procurando companhia para jantar na Churrascaria Vera Cruz. Prontamente, aceitei o convite. Agora, que o tempo passou, posso revelar. Minha curiosidade de conhecer a famosa Churrascaria Vera Cruz era bem maior do que a satisfação de saborear o churrasco. Entusiasmada, logo me aprontei.

Fingindo o traquejo dos quem têm por hábito frequentar restaurantes, tudo corria bem até que eu deixei minha faca cair. Uma explicação: família numerosa, nossa mãe sempre exigiu que recolhêssemos qualquer coisa que derrubássemos, por menor que fosse. E mais. Caso encontrássemos algum objeto no chão, deveríamos pegá-lo sem reclamar por não ter sido quem o deixara cair.

Então, assim condicionada, imediatamente fiz menção de me abaixar, quando o amigo segurou meu braço e me ensinou que essas questões cabiam ao garçom que servia nossa mesa resolver.

Juro que fiquei constrangida por deixar visível minha pouca, ou melhor, nenhuma vivência de restaurantes. Mas foi só por um minuto. Logo esse sentimento se transformou. Eu me senti mais que reconfortada, importante mesmo. Não era todo dia que eu tinha alguém para apanhar do chão, sem reclamar, o que eu deixasse cair distraidamente.

Nossa conversa foi ótima. Meu amigo era piloto, por isso, sempre contava casos interessantes e divertidos.

Terminado o jantar, com calma, caminhamos para a minha casa, que ficava na rua 20, entre a 4 e a 5. No cruzamento da Avenida Araguaia com a Avenida Anhanguera, paramos para esperar um carro passar. Foi nesse momento que olhei longe, em direção da Praça do Bandeirante.

Por ser quase Natal, as árvores das calçadas estavam iluminadas com lâmpadas coloridas, que refletiam cores azuis, vermelhas, amarelas nas poças d’água deixadas pela chuva. As palmeiras, plantadas em linha reta no centro da avenida, balançavam suas folhas brilhantes ao sabor do vento brando.

Tudo estava bem. Recentemente diplomada Professora de Curso Primário, já possuidora de Carteira de Identidade, portanto, responsável única pelos meus atos, eu me vi pronta e consciente para, sozinha, ousar os primeiros passos da minha jornada existencial.

Foi com esse viço ainda não experimentado, que voltei para casa. Nascera em mim uma coragem de viver e de enfrentar reveses, que, até o momento, nunca havia sentido.

Então, assim provida dessa imbatível força juvenil, comecei a escrever a mais singular das histórias que, em dias vindouros, eu ainda criaria.

A história da minha vida.

 

(Heloisa Helena, escritora)

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