Brasil

Foi um rio que passou em minha vida

Redação DM

Publicado em 18 de fevereiro de 2016 às 23:20 | Atualizado há 10 anos

Antes das cidades existia a natureza; todas as formas de vida eram plenamente integradas a este exato mundo. É a ação humana, racional, consciente e no eterno movimento por transformar esta natureza por meio do trabalho que desintegra o homem da natureza original porque ou este mesmo humano constrói uma “segunda natureza” para viver, subsistir e ser ou é devorado pela natureza, seus efeitos e eventos.

Mas de fato, é importante deixar claro que ai onde está a cidade haviam campos onde manadas cruzavam em busca de áreas mais férteis; ocorriam imensas revoadas de pássaros que se aquietavam para procriação e alimentação; o que é hoje a cidade antes, bem antes, corriam rios, desaguavam livres ribeirões carregados de peixes; escorriam regatos e aguados. A cidade de hoje era antes um enorme santuário de vidas que se entrecruzavam em um fecundo ciclo alimentar de complementações e suplementações.

A cidade, sua instituição, seu avanço pôs fim a este mundo edênico. De outra maneira é importante afirmar que não existe o “fim” para a natureza. Ninguém destrói a natureza e não é a prepotência tecno-produtivista do capitalismo que irá fazê-lo e é de conhecimento até do reino mineral a célebre frase do cientista francês Lavoisier e que já no século XVIII afirmara que “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”.

Assim, aquela natureza original não fora exterminada ao nível pleno, não desapareceu mas se transformou para fins de sobrevivência, de continuidade.

A natureza se adaptou a um acidente sociobiológico chamado “homem” e o fez com sabedoria e paciência geológica. Sumiram rios, ficaram os sulcos na terra; desapareceram espécies, ficaram disparidades e desequilíbrios ambientais; foram erradicados equilíbrios entre grandes espécies animais, novos equilíbrios a envolver mosquitos, pestes e outros bio-vetores é tecida arrasando por conseguinte, com milhões de vida humanas em todo o mundo.

Não… O homem não destrói a natureza; a natureza se adapta ao universo de ameaças e que representa o homem contemporâneo orientado pelo juízo e pelos valores da moderna forma capitalista e que cada vez mais vai se tornando um bio-capitalismo.

Com sanha inesgotável e incompreensível por consumir o que existe e o que não mais existe; o que lhe pertence e o que pertence aos outros; o que é necessário e o que não é necessário; aquilo que é permitido e tudo o que não é permitido este homem ou arremedo de homem, serventuário automato e em série da forma socioprodutiva do capitalismo é impiedoso carrasco de si mesmo.

O magistral professor e geógrafo Milton Santos irá arrematar esse trágico movimento afirmando que “o consumo é o grande fundamentalismo do Ocidente”. Será mesmo?

De tanto consumir, consumir e consumir… Estamos a nos consumir, consumir nossas possibilidades vitais, nossa cultura, nossa sociabilidade e nossa gente. Consumimos e re-consumimos o já consumido. Como patético e medonho gado humano regurgitamos nossa falência e nossos fracassos rotineiros como civilização e aposta de futuro. Fracassamos! Nosso consumo, destrutivo, impactante e absurdo virou um tal vício pior do que qualquer outro e que escandaliza os olhos cínicos e delicados de nossas burguesias contemporâneas.

O que está em questão é a natureza deste consumo; sua lógica e encadeamento; sua estruturação a partir do que sobrou de recursos naturais e seu acesso restrito, milimetricamente restrito e que não serve ao conjunto das pessoas e, exatamente por isso, predatório, agressivo, massificador e embrutecedor dos que o realizam e dos muitos que não o realizam.

É o enigma da contemporaneidade, ou seja, é consumo ruim, violento e antiecológico que massifica os que o ascendem e que, da mesma forma, brutaliza, coisifica e desumaniza os que não o possuem. Perdemos todos.

Reinventar o consumo é um caminho para postergar o já muito avançado extermínio da pobre e miserável espécie humana. A redefinição do consumo mais do que um laureado discurso ambiental é um imperativo para a continuidade do humano sobre este planetinha.

A natureza segue se adaptando, fatal e pacientemente se adaptando até chegar em seu ponto de equilíbrio e acomodação. Até lá… Veremos muitas inundações, tsunamis, desabamentos e endemias.

Seria bom pensarmos a respeito… Quanto a mim… Vou pôr a lama para fora, afinal… Vivo em Itumbiara.

 

(Ângelo Cavalcante – economista, cientista político, doutorando em Geografia Humana (USP) e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Itumbiara)

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