Folclore brasileiro: parteiras, partos e resguardos
Redação DM
Publicado em 3 de março de 2017 às 01:30 | Atualizado há 8 anos
Conheci a velha parteira Marcolina que dizia ter “pegado” mais de 500 crianças.
Quantas pessoas ilustres, umas exercendo altos cargos, profissionais liberais, até ginecologistas e obstetras famosos, que tiveram nascimentos sertanejos e interioranos. Nascimento pobre, desassistido, chegando, às vezes, às raias do absurdo. Há casos de mães terem pencas de 10 a 12 filhos, ou mais, sozinhas sem assistência a não ser pelo marido ignorante e desajeitado, sem nem um conhecimento, nem de higiene própria, quem diria assepsia? Durante a gravidez, recomendada pela parteira, a futura mãe teria que se sentar na soleira da porta para facilitar a saída da placenta. Eram tantos os cuidados dentro de um misticismo religioso, mas ajudava, psicologicamente. A parteira era e ainda é uma das criaturas mais importantes no sertão e pequenas cidades-interioranas. Quando falta tudo para a parturiente, a não serem os remédios caseiros, sem assistência médica aí entra a parteira com a sua sapiência e dá o conforto à sofredora, a começar pela sua presença. Algumas com as unhas compridas e sujas, contribuindo com a mortalidade infantil. E quando acontece, “foi Deus quem levou”, diz para a mãe chorosa. A força da religião, as superstições e as crendices ajudavam a consolar as mães: “Muita vez não ia dar um bom cristão e Deus tirou em tempo”, também diziam as comadres na maior das solidariedades. As simpatias para que tudo corresse bem, como a parturiente vestir a camisa do marido; uma corda amarrada no caibro do teto do quarto onde ela se agarrava e fazia força para ajudar nas contrações; uma garrafa para soprar com força que ajudava a expelir e o marido correndo dando 7 voltas ao redor da casa com a camisa pelo avesso; também com o machado batendo nas portas e janelas. A espingarda ali no canto esperando o rebento dar os primeiros mugidos, o choro clássico que anuncia o nascimento, mais um filho de Deus posto no mundo pra sofrer. A parteira, ou então a comadre, besunta o umbigo da sofrente com azeite doce e folhas murchas de mamona. Assim que a criança chora pela primeira vez, o pai chega à porta da sala ou da cozinha, espingarda nas mãos, dá o célebre grito bem goiano: Ei chão parado!… e mete fogo pelos ares. Aí a vizinhança acorre oferecendo os seus préstimos. A parteira coloca a mulher de cabeça pra baixo para evitar hemorragia. As crianças da casa que foram levadas pelos parentes e vizinhos, para não se impressionarem com os gritos lancinantes da mãe e também por acreditarem que o irmãozinho vem pelo bico da cegonha, chegam alegres, curiosas e assustadas, o mais novo fazendo bico de choro por perder a identidade de caçula. Tem vez que há festa para comemorar o nascimento de mais um brasileiro para compor a renca, a penca do casal. A maior curiosidade é verificar se o recém-nascido tem a cara do pai. O Umbigo da criança é desligado e jogado pra cima do telhado para que, quando secar, secará também na criança. Outras parteiras enterram em lugar sagrado, ao lado da igreja para a criança se tornar uma pessoa religiosa. Quando ocorre o mal-de-7 dias, assim conhecido no sertão, que é o tétano umbilical, a parteira cura colocando estrume de gado com óleo de mamona, desconhecendo que o vírus do tétano é gerado no estrume. Também uma associação de urina da criança com sal e fumo, que é um “santo remédio”, ainda bastante usado para muitos males, como machucaduras nos pés. A dieta: a mulher em resguardo de parto é uma enferma. Quarenta dias na base de canja de galinha feita na própria banha. Quarenta galinhas gordas, metade no almoço e metade no jantar. Em alguns lugares aqui em Goiás, também pirão do caldo com farinha de mandioca. Esquentava-se o cabo da colher em água quente para a “doente” não se constipar. Nada de feijão (arroz só na canja), carne de porco e de gado. Frutas? De jeito nenhum. Somente depois dos 40 dias. “Fruta de manhã é ouro, de dia é prata e de noite mata”, segundo as leis interioranas. Leite só depois de 10 dias. As parturientes das cidades tomavam cerveja preta, Malzebier (sem álcool) para aumentar o leite. Peixe, principalmente os de couro, nem pensar! Higiene, sempre muito pouca. Banho, só com água morna, bem esperta. Lavar a cabeça, só depois dos 40 dias, findo o resguardo. A mãe só penteava o cabelo depois de 5 dias, para o bebê não ter dor de barriga. E eram algodão nos ouvidos do nenê, janelas fechadas com as frinchas calafetadas com panos, o pimpolho só abrindo os olhos depois de 8 dias. Nada de luz. A roupinha deveria ser recolhida depois de lavada antes do pôr do sol. A chupeta, uma trouxinha de pano com uma pedra de açúcar mascavo ou um pedaço de rapadura. Todo parto sertanejo era um risco de morte para a mãe. E elas, como disse, tinham pencas de filhos. A minha sogra teve 14. Temos as nossas dúvidas se alguma mulher de hoje se sujeitaria a engravidar em tais situações. Ninguém dá a vida pelo filho antes de tê-lo. A gravidez de hoje é acompanhada pelo “meu médico ginecologista”, cesariana para fugir das dores. A Bíblia reza que toda mulher deve sentir as dores do parto. Hoje a cirurgiada andando no mesmo dia do parto e a criança recebendo alimentação industrializada. E a mulher sertaneja, terminado o resguardo, cai na serviçama de casa e roça, trata de capado que o marido sangra e deixa para ela cuidar e pega até na enxada. A mulher carajá acaba de dar à luz sozinha, carrega o rebento para dentro do rio, desprende-o do cordão umbilical e restos da placenta, joga tudo para os peixes, faz a “higiene” de ambos, executa todos os serviços da toca, enquanto o marido deitado na rede fica de resguardo por uma semana, comendo e bebendo servido pela esposa, como se ele próprio tivesse parido o carajazinho.
(Bariani Ortencio, [email protected])