Frederico
Redação DM
Publicado em 22 de fevereiro de 2018 às 22:40 | Atualizado há 7 anos
Sempre que lanço o olhar sobre a mata que margeia meu sítio, eu me lembro do traquinas do Frederico. A referida chácara situa-se na periferia da capital e o primo Bertoldo, há alguns dias, lá se aboletara como sempre faz quando vem tratar da coluna. Reside no interior, em um sítio onde cultiva lavoura. É um homem de roça, pouco afeito à cidade, só vindo mesmo por precisão. Pessoa simples, sem muita escolaridade, porém muito espirituoso. Desta vez não me esqueci da pergunta que queria lhe fazer e que nunca se calara dentro de mim:
– Primo Bertoldo, você que conviveu mais tempo com ele, por obséquio, responda-me: Que fim levou o Frederico, aquele peralta endiabrado?
Antes que ele me respondesse, no entanto, pedi-lhe um tempo para que eu narrasse até o ponto em que tinha conhecimento, já que o que pretendia mesmo saber era justamente a segunda parte da estória. Que ele me corrigisse se o que eu contasse não correspondesse a realidade dos fatos ou interviesse acrescentando detalhes ao que porventura eu tivesse me esquecido. Afinal, da árvore do tempo já havia despencado quatro boas décadas de anos.
– Vai tecendo daí, primo, que a gente remenda de cá. – Falou concordando o primo Bertoldo.
Eu me lembrava do Frederico com uma coleira à altura do pescoço onde se prendia uma corrente, na época em que o seu pai, Bertoldo, mudara-se para a cidade. O buliçoso macaco dava volteios, cambalhotas e piruetas, depois escalava o tio Afrânio, dos pés à cabeça. De pelos eriçados, ia de um lado a outro nos ombros do nosso tio, subia no topo de sua cabeça ou, por trás desta, meneava a própria, ora de um lado, ora do outro. Fazendo graças, assoviava e arreganhava os dentes, onde sobressaiam os seus perigosos caninos.
Nunca tive sorte com macacos, embora os ache engraçadinhos, pois nos divertem com suas macaquices, nesse tempo de escassas alegrias. Não ouso me aproximar muito, a única vez que o fiz, levei uma boa mordida no dedo, que me fez sair pulando de dor de um lado, enquanto o peralta saia do outro, em debochadas risadas.
– Sem contar, primo, que o macaco não era muito chegado as meninada curiosa, mas ao nosso tio Afrânio, deste fazendo gato e sapato, melhor dizendo, macaco e sapato, hihi… – Emendou Bertoldo.
Bem, continuei depois desta tirada jocosa do primo Bertoldo, o que sei é o que me fora relatado por nosso outro tio, o Osvaldo, que conhecera bem ao Simplício, um agregado da fazenda de seu pai. Ele me dissera que esse capataz, um tanto estulto, era de uma placidez sem tamanho. Imerso em doce candura, pouco se importava que sua mulher, dona Filomena, demorasse nas visitas à mãe, já idosa e adoentada, ou mesmo que pernoitasse por lá, voltando no outro dia ou dias depois. Em consequência deste fato, alguns companheiros do eito aproveitavam para escarnecer do néscio capataz, à guisa de inoportunas galhofas:
– Uai, Simplício, dona Filó anda sumida… Convém dormir com um olho fechado e o outro aberto..
Outros eram mais ferinos na troça:
– A galhada só cresce…
Para completar, um gaiato não identificável entre os peões, lacônico, lançava um espinho mordaz na alma de Simplício:
– Múúú!
Em certa ocasião, primo Bertoldo, a sua mãe, sinhá Adalgisa, deu um espalho geral, sob a orientação do senhor Valfredo, o seu pai, que sempre a utilizava como porta-voz, em razão de um efeito mais positivo nas atitudes reprovadas da peonada. Isto se deu, é claro, na ausência do Simplício, o qual, intencionalmente, fora enviado para outra tarefa longe da reunião. Reunidos os peões sob o pé de jatobá, em frente da varanda, ela principiou o sermão.
– De jeito maneira não quero mais caçoada de mau gosto à pessoa do Simplício. O pobre, todo mundo sabe meio atoleimado. Imaginam que estas chacotas não bolem com ele? Ninguém sabe mesmo o que ele sente por dentro, no seu taciturno silêncio. No entanto, uma corda esticada, com o peso e o tempo, acaba arrebentando…
Uma tosse seca, do senhor Venâncio, exigiu uma pausa mais longa na fala, instigando todos à reflexão. Em seguida, reiniciou sinhá Adalgisa:
– Quandefé, vai que ocorre alguma reação perigosa da parte dele? De modo que convém dar ao respeito com o próximo, que é nosso irmão, assim evitar mal maior. A mesma procedência quero com a comadre Filó, mulher séria e trabalhadeira. Se às vezes demora mais na cidade é por conta das perrenguices da mãe, já muito doente e sem parentes lá para cuidar dela. De hoje em diante, não quero saber mais dessas pilhérias sem graça, senão dou as contas na hora ao engraçadinho persistente na desobediência. Fica assim combinado, então? Agora, cada qual na sua lida.
A peonada, todos pareciam ter entendido o recado, retirando os chapéus e curvando a cabeça em reverência, logo após a iniciativa do senhor Juca Cipó, braço direito dos peões, em sinal de respeito ao sermão da patroa. A fala desta, com efeito, exercia muito poder sobre eles e o sentimento geral a partir dali era deixar na santa paz o ingênuo do Simplício. Afinal, sinhá Adalgisa era muito boa para todos, na precisão muito caridosa com suas famílias, não deixando que nada lhes faltasse ou socorrendo-os nas enfermidades e aflições.
Passados poucos dias, no entanto, um rapazote, filho do peão Malaquias, quebrou o protocolo de boas intenções ao indagar o Simplício a respeito do sumiço de um boi que o patrão o incumbira de procurar.
– Viu por aí não, Simplício? Um mocho?…
Os companheiros logo soltaram risinhos abafados, no esforço supremo para não prorromper em estrondosa gargalhada geral. O pobre do Simplício, de repente corou de raiva, menos talvez com a pilhéria do que com os risinhos refreados, e expeliu as lavas contidas de um vulcão que parecia extinto:
– Ainda mat’um peste desse, ara!
– Ih, o homem saiu mordido. É melhor tomar cuidado, Jeremia.
– Eu não falei por maldade. Não era intenção zucriná ele, santo Deus!
Simplício voltou ao rancho rubicundo, transtornado. Pegou da cartucheira e saiu dizendo que ia liquidar um cão que lhe mordeu o calcanhar… Neste instante, porém, seu filho, o menino Diofe, ao vê-lo de espingarda na mão, surge eufórico. Era comum seu pai levá-lo de companhia nas caçadas de codornas, bem como o cachorro perdigueiro Tupã. Desta forma, mais uma vez, o menino puxou as franjas de sua camisa, implorando para ir junto. Tupã, pressentindo a aventura, ficou em alvoroço, olhos ávidos e língua de fora. Essa lembrança das caçadas, passatempo que muito apreciava o capiau, abrandou o seu coração revoltoso, mudou-o de foco, livrando-o da sombra de qualquer lucubração sinistra.
– Ara, então vamos, Diofe. “Convém deixar o traste de lado”, pensou… Traz o embornal pra mode pôr as ave.
Adentrando a mata fechada, Simplício ouviu um macaco que soltava guinchos nas copas das árvores. O agora caçador, atormentado pela zoeira e ainda tomado de resquício de raiva, sem atinar bem no que fazia, mirou o símio, descarregando nele a carga de chumbo estocada na cartucheira como se fosse no lombo do língua solta filho do Malaquias.
– Toma, malcriado.
O pequeno Diofe fechou os olhos para não ver a barbárie. Mas ouviu o estampido, sentiu o corpo do símio descendo, desfolhando o arvoredo, estalando galhos, rompendo cipós. Enfim, o baque surdo no chão amortecido por um colchão de folhas secas. Tupã aproximou-se latindo, depois, com uma das pernas dianteira encolhida, equilibrando-se em apenas três, de orelhas levantas e rabo esticado, cheirou o símio agonizante.
No estertor, um gesto suplicante da mãe-macaca, estirada sobre a folhagem seca e duras raízes: as mãos unidas, apontando para o céu, a boca trêmula parecia proferir a última prece. Simplício, antes de ver a mãe-macaca cerrar de vez os olhos já embaçados, ouviu um último guincho lamentoso, como pedindo ao carrasco que poupasse seu filhote, que mantinha ainda a salvo colado ao corpo. Tupã, dando a última conferida na caça abatida, rabo entre as pernas, afastou-se emudecido.
Certamente nessa hora não havia coração que não esmorecesse. Na aspereza da consciência de Simplício, acendeu-se um clarão, sua rude alma tremeu de remorso. Não quis mesmo encarar o pequeno Diofe, mas exigiu dele que não contasse ao patrão a sua famigerada procedência. Senão…
O filho jurou segredo, no entanto, na artimanha, aproveitou para conseguir premiação por tamanho esforço de silêncio. Que o pai deixasse-o levar o filhote da finada macaca, já de corpo vencido no chão, de ventre para cima, as mãos unidas e postas para o alto, cena da qual o caçador, já um tanto arrependido, evitava olhar. O menino, no entanto, abraçado ao filhote, implorava, acompanhado por latidos fervorosos do cão perdigueiro.
– Deixa, pai. Vou cuidar direitinho dele. Digo que achei ele perdido na mata…
– Ara, tá bom, menino. Mas vê lá se não abre o bico. O patrão nem de longe pode sonhar que derribei um macaco… Ainda mais uma mãe-macaca de filhinho atarracado no corpo. Diacho, tudo por culpa daquele moleque atrevido duma figa. E mãe de Filó, que não sobe de vez… Arre!
Depois, Bertoldo, o que presenciei foi com os meus próprios olhos, quando o Frederico já estava adulto, à época em que tio Valfredo trouxe a família para morar na cidade e que o Juca Cipó ficou gerenciando a fazenda. O menino Diofe chorou deveras, pediu muito para não levarem o Frederico para a cidade, mas não teve jeito: seu pai não cedera aos rogos do pequeno. Apelou para o tio Afrânio, que, cabisbaixo, disse que nada podia fazer, o patrão é que dava as ordens.
O prosseguimento da narrativa fica agora por conta do primo Bertoldo, pois estou curioso para ouvir a segunda parte da estória, que deve responder à pergunta inicial.
(Joaquim de Azevedo Machado, escritor)