Gabinete Literário Goyano: tesouro que clama!
Diário da Manhã
Publicado em 24 de agosto de 2018 às 03:40 | Atualizado há 7 anos
Em meio às paredes desgastadas, rachadas, ameaçadas do velho casarão, há um apelo silente, um clamor estentóreo, que grita calado. As paredes e o telhado bramem tácitos, sucumbentes. As grandes janelas e a porta seguem desoladas e tristes por não poderem ficar abertas, por não poderem acolher estudiosos, leitores e curiosos, por sofrerem a injustiça daqueles que só criticam, sem ajudar: “Nossa! O Gabinete só fica fechado!”, daqueles que questionam desinteressados e insensíveis: “Já está fechado há muito tempo, hein? Não abre mais não?” Os livros raros, inestimáveis, clamam doridos e emudecidos seu lento fenecer no passar dos anos. Vão seguindo seu fado desvalido e inglório ante o desprezo, ou pior, ante a indiferença que quase todos lhes destinam. Vão sentindo sua dignidade corroída pelas traças e pelo olvido. Os jornais de antanho, muitos dos quais só ali existentes, bradam silenciosos e combalidos sua súplica de socorro – inaudível. As prístinas atas, registros de leitura, todos os antigos documentos, que contam páginas do passado, protestam quedos, sem vez e sem voz, pela sua preservação para as de agora e as vindouras gerações, na certeza, porém, de não serem ouvidos.
O que nos fica a parecer, quase patente, é que, por estas plagas tupiniquins, a cultura deve rastejar, deve humilhar-se para sobreviver, deve vexar-se por sua valorização, deve passar o pires e não esperar o café. Deve conformar-se com a desídia, o desprezo, o descaso, o abandono.
Um povo que não preserva e não valoriza sua memória está fadado a ser um povo vegetativo, insensível, ignaro de suas próprias raízes, carente de horizontes. Um povo sem memória é um povo fantasma que vaga pelas sarjetas da história, incônscio de si mesmo, mendigando sua existência. Um povo que não preserva, não valoriza e não fomenta a sua cultura é anencefálico e sem espírito, fadado a ser mero espectador acrítico do seu passado, apático, impotente e omisso ante seu presente e suicida do seu futuro, qual seu próprio e insano algoz.
Como é sabido e notório, encontra-se em deveras preocupante e consternadora situação tanto o casarão sede do Gabinete Literário Goyano como o seu riquíssimo acervo, em prol dos quais – tratando-se de instituição sem fins lucrativos e sem nenhum centavo de recurso para sua manutenção – lutamos há anos sem encontrar mãos institucionais que se nos estendam e que nos apoiem efetivamente na preservação deste inestimável patrimônio histórico e cultural dos goianos, dos brasileiros e, igualmente – por que não? –, do mundo, não sendo debalde lembrar que o casarão histórico sede do Gabinete Literário bem como o seu inigualável acervo compõem o patrimônio da Cidade de Goiás, que é Patrimônio Histórico e Cultural Nacional, reconhecido pelo Iphan, e Mundial, com a chancela da Unesco.
Fundado em 1864, na Cidade de Goiás, então capital goiana, o Gabinete Literário foi a primeira biblioteca pública do Estado, de modo que guarda história e memória deste e da nossa velha Vila Boa, da nossa gente, sendo, de per si, um tesouro e, ao mesmo tempo, um relicário da cultura goiana. O Gabinete Literário exerceu, a partir da segunda metade do século XIX, papel crucial na circulação de livros e da leitura nestas terras quando ainda éramos província, tendo funcionado, na antiga capital, como gabinete de leitura com locação de livros, tanto literários como das mais diversas áreas do conhecimento, assumindo – numa época em que havia escassez de livros, vez que caríssima a aquisição e muito dificultoso o acesso – um papel catalisador da leitura e da cultura na então província e, bem ainda, um papel vanguardista e relevantíssimo na construção de um projeto educacional para a sociedade goiana, a partir do século XIX.
Além do quê, juntamente com o Lyceu de Goyaz e o Seminário Santa Cruz, foi o Gabinete uma das primeiras instituições goianas a promover a difusão de ideias, da instrução, da atividade intelectual e da produção literária e cultural de Goiás, tendo sido efervescente espaço da intelectualidade goiana, por onde passaram notáveis personalidades das Letras, tais como as poetisas Cora Coralina e Leodegária de Jesus e o Juiz de Direito e poeta Luiz do Couto, sendo, ademais, fonte fértil donde tantas gerações saciaram sua sede de saber, ciência e cultura.
É de se destacar, outrossim, que figuraram entre os sócios honorários do Gabinete Literário Goyano o livreiro e editor francês Baptiste-Louis Garnier – um dos principais editores do Brasil na segunda metade do século XIX, que fundou a Livraria Garnier no Rio de Janeiro, editando seus livros no Brasil e imprimindo-os em Paris e Londres, e teve longo relacionamento profissional com Machado de Assis, do qual publicou, pela primeira vez, as clássicas obras “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) e “Quincas Borba” (1891), de modo que publicava seus livros, por força do contrato que tinham, tanto no Rio de Janeiro quanto em Paris – e o preclaro escritor Visconde de Taunay – autor das célebres obras “Inocência” e “A retirada da Laguna” e um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras. Ambos doaram obras para o Gabinete Literário.
Assim que essa egrégia instituição, perseverando em face de todas as adversidades e obstáculos, marca profundamente, há mais de 150 anos, a vida da nossa Vila Boa – Cidade-Mãe, berço da cultura goiana – e do Estado de Goiás, consistindo, portanto, em espaço literário de extrema importância na formação intelectual, cultural e educacional do nosso povo. Incontestes e incomensuráveis, portanto, os serviços prestados pelo Gabinete Literário à sociedade goiana ao largo das últimas quinze décadas. Nessa senda, não podemos negligenciar a premente e inadiável necessidade de salvar, preservar, fortalecer e valorizar o Gabinete Literário Goyano e o seu portentoso acervo bem como de manter viva a sua rica memória, que, em última análise, confunde-se com a memória de Goiás, com a memória do povo goiano, sendo, pois, patrimônio nosso e responsabilidade de todos nós.
Em que pesem todas as procelas, e mesmo que a duras penas, o Gabinete Literário resiste e luta!
Ao longo dos últimos anos, especialmente do último lustro, as abnegadas Diretorias do Gabinete empreenderam diversas tentativas, junto a várias instâncias, em prol da causa de sua revitalização e da preservação do seu acervo, quase todas, porém, infrutíferas. Nessa esteira, depois de ultrapassadas tantas buscas malogradas, empós denegados tantos pleitos, depois de tantas portas fechadas à nossa causa, sentimo-nos agora – muito embora sem certezas absolutas – aquecidos por uma centelha de esperança na caminhada desta luta, deste sonho.
Na manhã do último dia 11 de julho, estive em reuniões com o Presidente da Comissão de Cultura do Tribunal de Justiça de Goiás, Desembargador Dr. Itaney Francisco Campos, com o Presidente do Tribunal, Desembargador Dr. Gilberto Marques Filho, com membros da equipe de implantação do Centro de Memórias do Poder Judiciário Goiano, e com o amigo e escritor Celso Jubé, com o qual, por venturosa coincidência, encontrei-me no Tribunal, no ensejo em que fora doar para o Centro de Memórias objetos que pertenceram ao seu pai, Dr. Jairo Domingos Ramos Jubé, que era Desembargador dessa Corte.
O Centro de Memórias do Poder Judiciário trata-se de feliz e louvável iniciativa do Colendo Pretório Goiano para transformar o antigo Fórum da Comarca de Goiás em memorial do Poder Judiciário do Estado, visto que foi construído novo fórum nessa Comarca. Destarte, considerando a total pertinência desse projeto com o propósito do Gabinete Literário, posto que ambos – cada qual com seu enfoque – visam a guardar, preservar e valorizar parte significativa da memória goiana, bem ainda, considerando que o próprio Gabinete Literário guarda parte da memória do Judiciário do nosso Estado – preservada, por exemplo, em inúmeras edições de diários oficiais, jornais e livros afins que compõem o seu acervo –, e com vistas a buscar medidas de salvaguarda e preservação deste tão relevante espaço literário e cultural e de seu raríssimo acervo, foi que pedi a citada agenda com o Dr. Itaney Campos. Nesta ocasião, levei o nosso apelo de que o Centro de Memórias do Judiciário Goiano possa destinar uma de suas diversas salas para acolher o acervo do Gabinete Literário, já que sua sede não possui as condições adequadas para seguir abrigando-o, encontrando-se, igualmente, tal raro acervo em estado precário de conservação.
Fui muito gentil e atenciosamente recebido pelos ínclitos Desembargadores e suas simpáticas equipes, tendo-me ambos manifestado — com os olhos sensíveis que têm para as questões afetas à cultura goiana — seu interesse e preocupação em apoiar o nosso pedido, o qual foi formalmente recebido pelo Dr. Itaney por meio do Ofício que lhe apresentei.
Em tal sentir, esperançamos confiantes que o valioso acervo do Gabinete seja abrigado pelo antigo Fórum de Vila Boa, a primeira casa da Justiça nestas terras, a fim de que possa ser mantido e conservado nas melhores condições e por pessoal qualificado, de modo a – muito sugestivamente – fazer-se justiça ao Gabinete Literário, que há tantos anos vem sendo tratado com desdém e relegado à decadência e à omissão.
Uma vez acolhido em espaço adequado o acervo, passaremos – com as bênçãos de Deus! – às próximas etapas do nosso sonho para o Gabinete: reformar e requalificar o casarão sede e, num próximo passo, transformá-lo no Memorial do Gabinete Literário Goyano, onde se conte toda a sua história, onde fiquem para exposição e acesso ao público as obras, jornais e documentos mais raros bem como para que seja um espaço cultural para a realização de atividades literárias e artísticas, tais como lançamentos de livros, saraus e recitais.
Esse é um grande sonho. Talvez ainda distante. Mas se é para sonhar – embora firmes com os pés no chão – que seja alto, que seja grande!
E a centelha de esperança que ora nos aquece ganhou reforço…
Neste país onde a cultura agoniza, carece de apoio, mendiga sua sobrevivência, alenta-nos, emociona-nos, anima-nos, encoraja-nos encontrar no abraço sensível e forte dos nossos artistas, dos artistas da nossa terra, sua generosa acolhida, seu vigoroso apoio, sua guarida fraterna, como tal abraço enorme dissesse-nos (e diz-nos): “Conta comigo, Gabinete Literário! Estou contigo! Não te deixarei morrer! Não ao menos sem lutar por ti!”.
E assim foi que, num primeiro momento, nosso ilustre artista Di Magalhães – mesmo radicado em Curitiba – atendeu prontamente ao nosso pedido de fazer uma exposição beneficente em prol do Gabinete, vindo a ele, posteriormente, assomarem-se à causa os grandes artistas Ádria Lopes, Edinária Beltrão, Eloá Moraes, Gilmar Ferreira, Francisco Veiga, José Rogério Carvalho, Leonice Amorim, Lívio Costa, Marly Mendanha, Nonatto Coelho e Rosy Cardoso, que doaram belíssimas obras de arte cujos valores serão integralmente revertidos para a revitalização do Gabinete Literário.
De mãos dadas somos mais fortes! Dessa feita, nossos artistas, apaixonados por Goiás, foram sensíveis à causa e entenderam a relevância dessa luta, do Gabinete Literário e da preservação do seu acervo, envidando, assim, seus valiosos esforços e sua contribuição, e tornando-se grandes parceiros nessa empreitada. Desse modo, tivemos a alegria de abrir a exposição “Goiás em Aquarela: Di Magalhães e Artistas Convidados” no dia 27 de julho, na Escola de Artes Plásticas Veiga Valle, onde ficará até o dia 31 de agosto aberta ao público. Graças a Deus e aos parceiros, a abertura da exposição foi um sucesso. Das 23 obras doadas pelos generosos artistas, restam apenas 10 à venda.
Na noite inolvidável desse vernissage, tivemos também a apresentação encantadora com declamação de poemas pelo “Grupo Quebrando o Silêncio”, que é um grande parceiro das ações culturais na Cidade de Goiás, composto por notáveis mulheres vilaboenses, enamoradas das Artes, em especial, da Poesia. É coordenado pela caríssima Rosa Santana, que, há anos, desenvolve um desprendido, belíssimo e importante trabalho de resgate dos saraus vilaboenses, aguerrida batalhadora pelas causas da cultura.
Nesse ensejo, mister também expressar o nosso reconhecimento e gratidão à Diretora da Escola de Artes Plásticas Veiga Valle, a querida professora e artista plástica Marly Mendanha, amante das Artes e de Goiás, que, mesmo em período de férias da escola, não hesitou em abri-la, oferecer todas as condições para a realização da exposição e abrigá-la até o final deste mês, apoiando-nos de todo o coração, e coração de artista.
Sozinhos não somos, não fazemos e não podemos nada. O Gabinete Literário Goyano singra denodado contra as bravias correntezas que se lhe impõem, enfrenta, sim, as duras tempestades do descaso, mas não podemos, jamais, olvidar – a exemplo da referida exposição – que também existem pessoas, muito além da Diretoria, que o amam, que com ele se preocupam, que com ele sofrem, que por ele lutam, cada qual a seu modo, que reconhecem sua importância para todo o Estado de Goiás como guardião de história, memória e cultura, e querem vê-lo de pé, vicejante, e bem preservado o seu singular acervo para livre e apropriado acesso a pesquisadores, estudiosos ou, simplesmente, a apreciadores da história, a amantes das Letras, enfim, a todos que queiram mergulhar em seu mar imenso de cultura, literatura e saber.
Eis que é hora de batalhar, denunciar e suplicar, mas é sempre, também, tempo de agradecer. Porquanto se, a despeito de todas as intempéries, o Gabinete Literário galgou mais de um sesquicentenário e chegou até aqui, é porque, ao longo de todas essas décadas, houve quem por ele se dedicou com afinco, lutou valorosamente e se doou por paixão. Nossa gratidão, nosso muito obrigado, pois, a todos que acreditaram e acreditam, que apoiaram e apoiam o Gabinete Literário Goyano. Que Deus lhes abençoe e lhes pague.
Noutro passo, também oportuno compartir contigo as linhas seguintes, caro ledor. Na manhã memorável do dia 21 de abril deste ano, comemoramos, na porta do Gabinete Literário, junto à comunidade vilaboense, os 154 anos dessa instituição. Tivemos, pela manhã, um café da manhã com alvorada festiva da Banda de Música da Polícia Militar, lançamento do selo comemorativo dos Correios, apresentação musical de seresteiros vilaboenses, e, à noite, Missa Solene em Ação de Graças, no Santuário de Nossa Senhora do Rosário. Foram momentos de júbilo, de celebração, de gratidão a Deus e a todos os que lutaram e se doaram com amor, ao longo dos últimos 150 anos, em prol do Gabinete. Foram também, sem embargo, momentos de reflexão e de súplica aos Poderes Públicos, às instituições, à população vilaboense e a todo o povo goiano, para que nos demos as mãos, unamos as forças e possamos, conjuntamente, revigorar e preservar este patrimônio histórico-cultural singular para as gerações presentes e futuras.
Nessa ocasião, ao final do meu pronunciamento, declamei o poema de uma das frequentadoras do Gabinete Literário, nossa poeta maior, Cora Coralina, do qual se extraem os seguintes versos, quase proféticos: “Gente que passa indiferente,/ olha de longe,/ na dobra das esquinas,/ as traves que despencam./ – Que vale para eles o sobrado?”
Resta a nós refazermos a nós mesmos essa indagação e refletirmos sobre ela… – Que vale para nós o sobrado?
Ficam, pois, aqui, o clamor, a celebração, a reflexão. Ficam, também, a nossa busca e o nosso desiderato: preservar o acervo do Gabinete Literário Goyano para estas e as pósteras gerações, o que é direito e dever de todos nós, patrimônio nosso que é. Muito além dos membros de uma Diretoria, cujo mandato passa, a responsabilidade é de todos: dos Poderes Públicos e de cada cidadão vilaboense e de cada cidadão goiano.
Avigoramos, pois, a todos o nosso inarredável chamado, o nosso virente brado, a nossa insofreável batalha, para que não deixemos perder-se o riquíssimo acervo do Gabinete Literário. Conclamamos a todos para que somemos nossas forças em seu favor, ajudando cada um como puder. Preservemos a nossa memória literária, histórica e cultural para estas e as vindouras gerações goianas!
Não podemos deixar acabar um dos mais raros e importantes acervos do nosso Estado, para que não mereçamos receber o infame e deletério epíteto de um povo que deixa perecer sua memória, e, de consequência, sua história.
Os óbices e desafios são acerbos, são muitos e continuam. Esta nobre luta pelo Gabinete Literário também continua, sem certezas, sem tréguas, sem qualquer garantia, sem avistar vitórias seguras e consistentes. Mas continua. Continua porque há muitos dias para renovarem nossas forças a cada alvorecer do sol. Há muita fé. Há muita esperança. Há muita vontade para superar as barreiras. Há viço, ânimo, alegria em caminhar. Há muito amor para prosseguir.
A nossa causa é a cultura. A vida precisa, exige. O Gabinete precisa do apoio de todos! Precisa de nós! É patrimônio nosso, vilaboenses e goianos! Avante!
Viva o Gabinete Literário Goyano!
(Rafael Ribeiro Bueno Fleury de Passos, advogado, escritor, poeta, cantor e viajante. Presidente do Gabinete Literário Goyano, da Comissão Permanente de Licitação do Mun. de Goiás e do Conselho Municipal de Turismo de Goiás. Delegado da Escola Superior de Advocacia na OAB Subseção de Goiás e diretor do Museu da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos. Articulista do “Diário da Manhã” desde 2011. Membro da Ovat – Organização Vilaboense de Artes e Tradições e da União Brasileira de Escritores – Seção Goiás – rafaelrpas[email protected])