Opinião

Goianidade estrangeira: alemães que fizeram arte em Goiás

Diário da Manhã

Publicado em 8 de junho de 2017 às 03:06 | Atualizado há 4 meses

O sentimento de goianidade nas artes plásticas em Goiás, nasceu ou tomou forma, inicialmente, com artistas estrangeiros aqui radicados a partir da década de 50. São exemplos, o pintor italiano Frei Nazareno Confaloni e o escultor alemão Gustav Ritter, os quais estão na origem da Escola Goiana de Belas Artes, fundada em Goiânia em 1954. Depois vieram outros artistas, como a italiana Dina Cogolli, escultora, e, mais recentemente, o dinamarquês McGregor, que se radicara na cidade de Goiás, os quais se filiaram a uma temática ligada à paisagem goiana através da representação dos entes da natureza, como animais, pássaros, insetos, elementos vegetais e vários temas ecológicos ou motivos paisagísticos.

Por sua vez, artistas procedentes de outras regiões brasileiras que vieram trabalhar em Goiás, são também responsáveis pelo sentimento de goianidade presente nas artes visuais goianas, antes mesmo de esse conceito regionalista subsistir na consciência dos artistas locais. Lembro-me de tomar conhecimento da bucólica paisagem da Chapada dos Veadeiros no nordeste goiano, através das aquarelas de Henning Gustav Ritter, em exposição realizada no Museu Goiano Zoroastro Artiaga, no final dos anos 60. Esse sentimento de goianidade hoje estandartizado manifestou-se inicialmente num sentido ecológico de integração dos artistas chegantes com a paisagem contemplativa goiana, que passava a ser objeto da representação visual.

 

Sentimento telúrico 

Esse aspecto de naturalismo pictórico é ainda intensamente explorado nas artes visuais em Goiás, através de variantes estéticas que evoluem do romantismo ao impressionismo, do impressionismo ao abstracionismo (na escultura atual, um exemplo é Maria Guilhermina, e um nome pioneiro é o próprio professor Ritter) e do abstracionismo ao expressionismo abstrato, como se vê na pintura atual de Kleber Gouveia e de outros pintores da nova geração.

Dentro dessa temática da natureza, agora podemos ver a exposição denominada “natureza e configuração orgânica”, que se realizará nos dias 23 a 27 no Instituto de Artes da UFG, reunindo trabalhos de três artistas alemães de origem: Henning Gustav Ritter (esculturas), Gudrun Rademacher (aquarelas) e Thomas Tillmann Ritter (gravuras), com um sentimento telúrico que representa mais um passo da consciência ecoló-gica que se vem desenvolvendo nas artes visuais em Goiás.

 

Esculturas de Ritter 

Do saudoso professor Ritter são apresentadas esculturas em madeira ou em madeira-e-alumínio, que refletem o primeiro momento do abs-tracionismo plástico em Goiás, voltado para o construtivismo geométrico e a pesquisa de efeitos de espacialidade. Nessas esculturas não figurativas, se reconhecem, não obstante, formas particulares de objetos fragmentados, formando, no todo, sugestões visuais de várias formas no espaço. Ressalta-se nessas esculturas a pesquisa de movimento em que a tridimensionalidade tradicional é substituída ou resolvida através de elementos vazados nos volumes ou superfícies, de modo a se ter a sensa-ção das formas integradas no espaço. As esculturas de Gustav Ritter são, portanto, espaciais, leves e transparentes, sem prender-se a formas fixas ou a espaços delimitados.
 Aquarelas de  Gudrun 

Gudrun Rademacher retoma, por sua vez, a temática das aquarelas iniciadas por Ritter na década de 60, agora inspiradas não só na Chapada dos Veadeiros, mas também nas águas e praias do Araguaia. Na série de aquarelas de Gudrun sobre o Araguaia, tem-se a impressão de se visualizar o movimento das ondas e da areia que se sobrepõe às águas quando estas baixam em julho. Predominam os tons verde-claro e azul-celeste que refletem o colorido da paisagem beira-rio e a beleza das águas e dos céus goianos ainda não poluídos. Nas paisagens solitárias de Gudrun, sem a presença da figura humana, a natureza é representada em si mesma, distanciada e contemplativa. Suas aquarelas transmitem um sentimento de refugio na natureza, bem ao gosto dos alemães.

Na série de aquarelas sobre a Chapada dos Veadeiros, reconhecem-se as colinas encadeadas nas proximidades do morro do Ferro de Engomar e tem-se a sensação da união terra-céu onde se captam espaços infinitos sobre as elevações verdes. Embora se individualizem tais elementos telúricos nas aquarelas de Gudrun, estas parecem mais abstratas em relação às aquarelas de Ritter que são mais naturalistas. Se pudéssemos ver todas reunidas, certamente completariam, em versão pictórica, a função de qualquer álbum fotográfico sobre vistas locais, com destaque pela estilização de linhas e a combinação de cores que dão a sensação estética da paisagem recriada.

 

Gravuras de Thomas 

Nas gravuras de Thomas Ritter, que estilisticamente se distanciam da linguagem plástica de seu pai e precursor, são trabalhados motivos da natureza goiana, alguns também inspirados na Chapada dos Veadeiros, mas dentro de uma visão dinâmica em que os objetos representados parecem atender a determinadas funções na relação homem/natureza. Não é representada a paisagem em si, mas elementos da natureza, como peixes, folhas, redes e outros objetos relacionados a uma ação ou mutação contínua. Enquanto Gudrun situa a natureza em si, sem utilizá-la para uma função específica, Thomas situa a relação homem/natureza, em que os elementos aparecem transfigurados pela ação humana. Aqui uma visão dinâmica que se opõe a uma visão contemplativa.

Além de gravuras com motivos da natureza, Thomas expõe também gravuras com motivos geométricos, anteriores, de uma fase construtivista do artista, que reflete a pesquisa de formas no espaço de que resulta a sensação de movimento, explorada em trabalhos posteriores. São qua-drados e esferas, triângulos e retângulos, formas geométricas entrelaça-das sem configuração específica, que apontam para a visão de forças in-ternas e externas que se contrapõem em movimento contínuo. Nas gravuras naturalistas nota¬-se o efeito dessa pesquisa de movimento, em que se representa, por exemplo, o voo do pássaro e não o pássaro, o balanço da rede e não a rede, e assim, a relação inter e ultra dos objetos em ação contínua e da natureza em transmutação. É clara em Thomas a evolução do abstracionismo geométrico para o expressionismo abstrato. E talvez o salto da gravura para a escultura. Nas pegadas do pai.

(Artigo publicado originalmente em O Popular, caderno 2, Goiânia, 22/03/1992, p. 2. A propósito de uma exposição realizada no Instituto de Artes da UFG, em março de 1992).

 

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da  Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa)


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