Goiás tem, hoje, uma inovadora “Escola de Psiquiatria”
Diário da Manhã
Publicado em 23 de maio de 2017 às 02:15 | Atualizado há 8 anos
Um amigo perguntou: “Qual é a melhor Escola Psiquiátrica”, na sua opinião? (ou seja, basicamente, referia-se às escolas: americana, francesa, alemã). Eu respondi: “a nossa”. Ele achou que era sarcasmo e não gostou… kkkkkkk. Eu, é claro, prometi que iria responder com uma certa seriedade. Vou tentar resumir.
1/ Escola americana – uma porcaria rica, do tipo “verme dourado”. A psiquiatria americana é a mais poderosa do mundo. Manda no mundo da psiquiatria, todos rezam por sua cartilha. Talvez o psiquiatra mais famoso, mais profundo, mais lido, nos EUA hoje seja o Stephen Stahl, autor desta passagem de um livro, que eu mostro na gravura anexa. Leiamos essa passagem, onde ele discute o caso de um paciente: …”é possível que, aqui, o paciente evoluiu de um quadro de transtorno obsessivo-compulsivo para um transtorno de personalidade esquizotípica. Aí ele teve uma comorbidade com um transtorno delirante, sobreajuntado com o transtorno obsessivo. E está a caminho de se tornar um esquizofrênico”…. (!!!!). Vejam bem, o maior psiquiatra, da melhor psiquiatria do mundo, e que “todo mundo segue”, diz isso: “o cara tinha uma obsessão que virou transtorno de personalidade, que virou transtorno delirante, que está prestes a virar uma esquizofrenia….”. E é isso que o mundo todo está seguindo!! Não é à-toa que tá todo mundo perdido com uma palhaçada dessas… Por exemplo, quando eles encontram vários sintomas numa pessoa, sintomas de várias doenças diferentes, eles usam uma palavrinha mágica, que resolve tudo: “…ahhhh, esse paciente tem uma “co-morbidade”. Como se uma palavra resolvesse a ignorância.
2/ Escola francesa. Esta se perdeu na descrição de sintomas, que ela julgava serem doenças. Por exemplo, para os franceses, eram doenças: confusão mental, delírio de perseguição, delírio interpretativo, etc. Eles descreviam bem alguns sintomas, mas tinham o erro de serem muito analíticos, pouco sintéticos. Por exemplo, hoje sabemos que o sintoma “confusão mental primitiva” , que Chaslin dizia ser uma doença à parte, é apenas um dos possíveis sintomas da doença bipolar. No entanto, produziram enormes avanços na descrição de “doenças reais” na psiquiatria (ou seja, doenças que existem mesmo, não são a descrição de puros sintomas), por exemplo, a psicose da paralisia geral progressiva, causada por neurossífilis (desoberta de Bayle), e a “loucura circular ou loucura de dupla forma” (descoberta de Baillarger/Falret), depois rebatizada como psicose maníaco-depressiva (Kraepelin) , hoje rebatizada como doença bipolar. Além de “demência precoce” (Morel) depois rebatizada como esquizofrenia (Bleuler).
3/ Escola alemã . Já esta pecou, de certo modo, pelo excesso de síntese, ou seja, fez o contrário da escola francesa: ajuntou numa só o que eram para ser várias doenças. Kraepelin , por exemplo, disse que a “catatonia” (Kahlbaum) pertencia à “demência precoce” (depois rebatizada de esquizofrenia por Bleuler), quando hoje se sabe que a maioria das catatonias são bipolares, e as outras que sobram são orgânicas (restando pouquíssimas que são esquizofrênicas mesmo). Outro enorme erro de Kraepelin: incorporou o “delírio sistematizado crônico” de Magnan (“parafrenia” dos autores alemães) à demência precoce (futura esquizofrenia). Hoje sabemos que as parafrenias (psicoses que geralmente acometem pessoas provectas) são “doenças mentais orgânicas”, em sua maioria de causa cerebrovascular. Outro problema de Kraepelin (escola alemã): incorporou elementos de paranóia (p.ex., o delírio sensitivo paranoide de Kretschmer) à demência precoce. Hoje sabemos que este quadro de Kretschmer é basicamente bipolar. Outro autor alemão fez algo semelhante: K. Conrad, achava que vários sintomas, hoje sabidamente bipolares, eram indicativos de uma “esquizofrenia incipiente” (doença que está no começo); fez isso em seu livro “ La esquizofrenia incipiens” (tradução espanhola). Este é um erro muito cometido por toda a escola alemã, inclusive por Kraepelin e Bleuler, que incorporaram vários sintomas de doença bipolar (ou outras doenças, como por exemplo o autismo de Asperger) na demência precoce/esquizofrenia. Isso produz estragos terríveis na psiquiatria. Ainda continuando com Kraepelin, ele incorporou o “delírio interpretativo de Serieux e Capgras” à sua demência precoce, o que é outro erro. A maioria dos quadros de delírio de Serieux e Capgras são devidos à doenças bipolares, algumas complicadas por fatores orgânicos: por exemplo, mulheres que tem uma genética bipolar, podem desenvolver “delírios interpretativos” após problemas hormonais, castração cirúrgica, menopausa, hipotiroidismo, etc.
4/ Para uma visão histórica dessas escolas, é muito bom o livro “Fundamentos da Clínica”, Ed. Zahar, de P. Bercherie.
Nos dias de hoje, uma das hipóteses mais fascinantes é a de que haja um “continuum”, um espectro, uma ligação, entre várias doenças mentais, antigamente reputadas como separadas. É a hipótese da “psicose única” – ou seja, esquizofrenia e bipolar fazendo parte de um mesmo espectro – defendida desde autores muito antigos, p.ex., Griesinger, até autores bem modernos, p.ex., Ey, Brockington, Berrios, etc. É a hipótese com a qual nosso grupo de pesquisa, em Goiânia, trabalha. Nela, há uma certa interpenetração e continuidade entre sintomas bipolares, esquizofrênicos, autísticos e até epilépticos. Estudamos isso longamente em um nosso livro que está para ser lançado, pela Editora Sparta, “Neuropsicologia dos Transtornos Psiquiátricos”, provavelmente no próximo Congresso Brasileiro de Psiquiatria. É isso que eu chamei sarcasticamente, pejorativamente, de “a nossa escola” aí acima.
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra. Escreve as terças, sextas, domingos, no Diário da Manhã)