Opinião

Goyaz – Goiaz – Goiás – Expressões telúricas de uma terra imemorial

Redação DM

Publicado em 22 de junho de 2016 às 03:28 | Atualizado há 7 meses

Em Goyaz, como se grafava, no começo de todos começos, as pequeninas vilas eram abrigadas na placenta verde das matas! Uma terra do acolhimento. Há uma ideia de aprofundamento, já que se concentra na depressão do Araguaia, com suaves inclinações.

São os terrenos antigos e aplainados pela erosão, que originaram os poéticos chapadões.  Do rio decantado em prosa e verso, acompanhando seu leito, a inclinação do que se chamou, depois, Goyaz! Tudo fluiu assim, sem cessar dia e noite, desde os tempos imemoriais.

Tudo nasceu no calor da terra dadivosa, ao fazer surgir o ouro, as riquezas minerais tantas; além da agricultura incipiente, cujos alimentos mataram as fomes iniciais. Tudo teve formação num projeto de Nação do século XIX, eivado pelas duas frentes de ação, uma, na tentativa de tornar o litoral com ares europeus e outra pela interiorização, pelo conhecimento do sertão e das possíveis riquezas e possibilidades havidas no desconhecido.

Há um equilíbrio em todas as coisas, conforme a noção filosófica da antiguidade. Essa perfeição só foi rompida a partir da ganância e destruição que o homem moderno engendrou.

É importante salientar, também, que a ideologização da natureza é muito antiga; tanto quanto a sua própria história, o que implica num conceito de dualidade; que se fundamenta em filosofias artificialistas e naturalistas; estas que vêm com linhagens contraditórias, similares ao misticismo do passado.

É preciso uma busca mais científica nessa concepção. Não só era idealizada a natureza em Goiás, como também imaginada, ainda no Império como fonte de muitas riquezas. Tal fato tornava cambiante os significados de termos como pátria, nação e Estado.

Ao pensar a natureza goiana, numa oscilação do tempo, o seu sentido de pátria, nação e Estado, a foto abaixo, emblemática, nos evidencia JK no Cerrado, no campo limpo, a olhar o horizonte e, por certo, a pensar na grandeza desse chão infinito e plano. De olhar incisivo marcaria a secular luta de interiorização da Capital Federal. O Cerrado seria o chão possível a esse arrojado projeto.

Ainda segundo Lèvi-Strauss: “O homem atribui à natureza, traços humanos, para poder se revestir, ainda que ilusoriamente, das forças da natureza. Na cosmologia grega, o mundo é dotado de uma hierarquia funcional que o torna semelhante ao organismo biológico”. É a única forma de o homem poder compreender a natureza e suas diferentes manifestações. Segundo o autor de Tristes trópicos, essa ilusória visão da natureza só é descartada a partir de Copérnico com sua revolução mecanicista e a natureza passa a ser vista como “ser-outro”.

O que é importante salientar é que a “a terra é um corpo em contínua transformação e suas variantes antes mais lentas, hoje perceptivelmente, pela ação do homem, aceleraram.

A relação do homem com a natureza, nos últimos anos sofreu um profundo colapso; antes, o homem do campo vivia em sintonia com a mesma, respeitando os seus ciclos e, pelo viés da ganância, passou a usurpar a mesma, na busca desenfreada pelo lucro a qualquer custo.

Pelo viés da Geografia observamos o Cerrado, enxergamos as coisas e as destacamos no espaço territorial do que, mais tarde, se chamaria Goyaz! A literatura, com sua carga semântica, carregada de profundos significados, funda o espaço e os lugares e constrói uma espacialidade própria, regida, também, pela emoção. Assim ocorreu em Goiás. Tantos escritos mostraram o espaço por uma ótica diferenciada, continuando ainda a ser Goiás, terra perdida nos confins do País.

O interior era sempre o interior, com seus atrasos e dificuldades inimagináveis. E tal distância e desconhecimento alimentava o imaginário de muitos no litoral e nas cidades mais opulentas e desenvolvidas, como tão bem estudou Julio Suzuki em suas muitas obras sobre a simbiose possível entre texto literário e Geografia.

Os textos em prosa e verso, sejam por poemas, odes, elegias, éclogas, romances, contos, novelas, crônicas, relatos históricos, os mesmos evocam o passado e o presente, a configurarem o Cerrado com as suas constituintes próprias, vegetação, fauna e flora; assim como recriam pessoas, lugares, rurais ou urbanos e dinamizam a memória e os acontecimentos. Repensam os atores do mundo cerradeiro e a evolução questionável de um mundo modificado paulatinamente.

Geograficamente configuram o tempo e mostram a dinâmica social e política que engendrou toda uma transformação. Mostram, ainda, a ligação com o ideário de construção de uma Nação, sob a égide da Monarca e o ideário que estaria longe de ocorrer, que era a unificação.

Há um diálogo com os lugares e particularização da região, configurando todo um universo reconstruído pouco a pouco. Desde o princípio, as categorias geográficas foram inseridas na análise da criação literária goiana, a identificar o Lugar sob primazia. Era preciso dizer o que era o Cerrado nessa visão; dentro dele o recorte de Goiás pelos gêneros e os autores selecionados pela escala do tempo, na cronologia.

 

 

Tantos que vieram para Goiás e particularizaram a região, na criação de tantos diferentes lugares no chão do Cerrado, configuraram o dinamismo dos ciclos econômicos no ir e vir pela terra goiana: Ouro, gado, cidades, fazendas, plantações, ferrovias, indústrias. Idas e vindas num mesmo chão. E os literatos tentaram identificar esse chão, chão vermelho de ermos e gerais, de caminhos e descaminhos, de tropas e boiadas, a recordar os nomes de obras literárias de Eli Brasiliense, Carmo Bernardes, Bernardo Elis e Hugo de Carvalho Ramos, tantos e tantos outros.

E nos começos do “chão cerradeiro dos goyazes”, o que se buscava da natureza eram as riquezas minerais nascidas no seu solo. O que estava guardado dentro da terra e o que ela escondia. O de sobre a terra, no caso o Cerrado, no princípio pouco importou.

E, ao contrário do que se pensa sobre a importância histórica do Bioma-território Cerrado e de suas terras, na imaginação geral, o mesmo se constitui em terras muito antigas, configurado, na arqueologia, como região do Holoceno antigo. Há muitos sítios arqueológicos no Cerrado, principalmente na região de Serranópolis, no Sudoeste goiano, em que se encontram vestígios pré-históricos.

Só a partir de 1727, data oficial da ocupação, essas terras passaram a ter dono, no recorte do que seria Goiás, como mostram as cartas de Sesmaria, títulos de posse dos terrenos, das primeiras concessões nas proximidades de Vila Boa de Goyaz, no que se chamou “terra dos goyazes” e que permitiam a posse e a utilização das terras no âmbito do Cerrado intocável então.

Usavam esses primeiros homens Cerradeiros os instrumentos rudimentates feitos de pedras, com lâminas unifaciais bem feitas, ao certo para cortar as peles dos animais caçados. Nas cavernas, ainda podem ser vistas pinturas rupestres que singularizam esses animais, suas caças e suas vidas no inóspito ambiente, em animais como lagartos, tatus e onças. Há representações de árvores do Cerrado, o que mostra esse Bioma-território como resistente.

Esse Cerrado foi habitado por um só tipo de cultura humana após o término da glaciação. Esse tipo vida, de insipiente sociedade e de homem, com a sua cultura, no campo da arqueologia foi denominado de “tradição Itaparica”, que era composta de grupos estáveis e instáveis no território que se denominaria mais tarde, Goiás!

Goyaz, como se grafava, nasceu, assim, do mistério e do insondável das minas com seus sonhos e frustrações! O meio inóspito, o Cerrado, o Bioma-território era completamente esquecido e desprezado. O de cima da terra nada valia; valor tinha o que estava escondido, como já foi referido. Razão disso é que, sempre nas descrições geográficas e históricas desse período, o Cerrado é completamente desprezado.

A ambição da Coroa Portuguesa pelo ouro do coração do Brasil, nas minas de Cuyabá e de Goyaz, tornou-se gigantesca. Era um novo Eldorado bravio e desconhecido.

Nesse imenso território de Goyaz, as minas setecentistas eram comandadas pelos guardas-mores que se comprometiam a pagar ao menos 20%, ou, a quinta parte, para a Fazenda Real. Era esta a economia da Coroa, que explorava absurdamente a colônia e as novas minas que apareciam em pleno centro do Brasil.

O sistema rudimentar de aluvião era o empregado na exploração do ouro, cavando os barrancos dos rios nas vilas de Santa Cruz, Vila Boa, Pilar, Crixás e Meia Ponte principalmente. Era uma atividade predatória, destruidora dos leitos dos rios, utilizando mão de obra escrava. Lenta e difícil, era pouco rentável.

Do surgimento do Arraial de Santana de Goyaz em 1727 até 1749, o nosso território era insignificante como parte administrativa da Colônia. Só se esperava a riqueza que surgia de cada mina descoberta pelos afoitos faiscadores e exploradores do desconhecido chão. O espaço era fatiado em Sesmarias.

Tudo porém foi passageiro, rápido, fugidio. O ciclo do ouro foi deveras curto e os donos das Sesmarias, em maioria desiludidos, abandonaram esse chão. Poucas décadas depois estas mesmas terras mudavam de dono.

Esse direito de posse sobre a terra vinha cerceado pelo uso de suas riquezas auríferas. Vegetação não tinha valor, ainda mais vegetação de madeira menos nobre, como as do Cerrado, nada significava, ou seja, por isso o Bioma-território é sempre relatado como inferior, nos escritos dos viajantes e estudiosos. O direito sobre a terra abria o sentimento também de pertencimento, que, mais tarde, seria alcunhado de “nacionalismo”, muito utilizado na Literatura, principalmente no Romantismo; em Goiás muito tardiamente pelas distâncias geográficas e culturais.

Mesmo o chão dividido e vigiado à maneira da época, o contrabando, porém, acontecia com frequência, haja vista que a Capitania de São Paulo, muito distante administrativamente, não conseguia coibir os roubos aos cofres reais. Por esta razão e pelo crescimento contínuo da população das regiões das minas de ouro, o Conselho Ultramarino decidiu em 1749 criar a Capitania de Goyaz.

Historicamente, o primeiro Governador da Capitania de Goyaz foi Dom Marcos José de Noronha e Britto, o 6° Conde dos Arcos, nascido em 04 de maio de 1712 e falecido em 14 de agosto de 1768, casado com Maria Xavier de Lencastre. Esse título de Conde dos Arcos foi criado em 08 de fevereiro de 1620 pelo rei Felipe II de Portugal, ou Felipe III de Espanha, em favor de Luis de Lima Britto e Nogueira. Seguiram-se Dom Lourenço Maria de Lima Britto Nogueira, Dom Tomás de Noronha, Dom Marcos de Noronha, Dom Tomás de Noronha.

O escoamento das riquezas era feito por meio de precárias estradas, notadamente na “Estrada do Sul”, principal da Província, que, de tempos em tempos, sofria reparos por engenheiros técnicos vindos do Rio de Janeiro, como atesta o documento abaixo, datado de 1882, do “Palácio da Presidência de Goyaz”. Esses serviços permitiam o escoamento da pouca produção local, assim como a chegada de possíveis aventureiros que por esse grande interior vinham em busca de riqueza ou mesmo para esconderijo. Daí a ideia de “terra de ninguém”.

Por esta estrada também vinham os imigrantes. Vindos de terras distantes, muitos d’além mar, traziam os preconceitos da época e se dedicavam a administração da mineração e pouco se importavam com o meio natural ou com as nossas possíveis riquezas vegetais.

O caráter épico dado ao descobrimento das minas de Goyaz, explorado por muitos historiadores do passado caracteriza uma ideologia marcada pelo gosto ao literário, principalmente na Memória escrita por Silva e Souza, ou seja, pintar com nuances de epopeia, a saga dos primeiros caminhos abertos por aventureiros diversos nos caminhos e na “picada” para Goyaz. Essa Memória é um dos primeiros tratados sobre nossa terra, escrita de forma incisiva, a investigar os feitos dos primeiros homens que se aventuraram nesse chão.

Tudo aqui era um território puro, entendendo-se o termo como uma faixa completamente alheia do mundo ocidental, experienciada apenas pelas tribos indígenas que por este chão parado perambulavam na busca de caça e da pesca.

O Cerrado primeiramente é visto como Bioma-território menor, inferior, descrito com agudeza e distanciamento. Não era um território na concepção geográfica atual, de um mundo em contrastes, lutas e conquistas dos mais fortes sobre os mais fracos.

Mas, a transformação do Cerrado impacta os sujeitos ali existentes e a suas maneiras de enxergarem o mundo, as coisas, os acordos econômicos e até a questão do dinheiro, do poder, da compra, do consumo: camponeses, indígenas, trabalhadores, migrantes, lavadeiras, pequenos sitiantes; todos sofrem os impactos das grandes culturas como soja, algodão e cana, que chegaram, ampliaram os espaços de produção, mas trouxeram muitas transformações.

E a princípio, nos estudos geográficos, históricos e econômicos, o Cerrado era visto como infértil e improdutivo, lugar de terra ruim, para, ao depois, suceder justamente o contrário, servir como celeiro do País.

Quando Goiás ainda possuía as terras do Triângulo Mineiro, sua área de Cerrado era ainda maior e fazia parte do rico julgado de Santa Cruz de Goiás, como nos mostra o mapa abaixo, de 1940; ao identificar os limites com Minas Gerais, a partir da “leitura”, do mapa de 1778, ou seja, o maior Julgado, de terras férteis, era o de Santa Cruz de Goiás, que abrangia inclusive grande parte do Triângulo Mineiro, nas cidades de Araxá, Sacramento, Bagagem, Estrela do Sul, Desemboque, Frutal, Abadia do Bonsucesso (Tupaciguara), Uberaba e São Pedro de Uberabinha (Uberlândia), que, há duzentos anos, passou para Minas Gerais, em 1816.

A Geografia, por sua vez, lança um olhar profundo sobre a história e nessa caminhada é possível ressaltar a mudança de eixo, desde a mineração, para o ciclo agropecuário e depois tecnológico, que apontou as possibilidades de uso das terras cerradeiras para a agricultura.

Nesse pensamento, a contribuição da Geografia no entendimento da história e da evolução humana é incalculável. A “modelagem” do espaço identifica a ação humana na esteira do tempo. É lícito assim, entender que o espaço fora do cérebro humano é uma realidade incognoscível e dentro do mesmo, um conceito muito vago, ou seja, que como qualquer fenômeno do mundo, o espaço é dúplice.

Sua concepção muda de homem para homem. Na própria concepção de Einstein, estamos mergulhados no espaço e dele também fazemos parte, portanto jamais saberemos a sua totalidade. Já para Kant, o espaço é a condição essencial para a existência dos objetos nele contidos e por esse motivo o espaço não é neutro.

Hoje, com a intensa gama de estudos e, ao mesmo tempo de problemáticas, expandiu-se muito, também, os recursos e metodologias para a análise. Segundo Celene Cunha Monteiro Antunes Barreira: “A Geografia perdeu o hábito de olhar, de uma forma que possibilite apreender a totalidade do lugar”. O “olhar” geográfico, hoje, tantas vezes dispersivo, perde a capacidade do mergulho. E essa ausência de mergulho, de aguda observação, remete a uma superficialidade que nivela todos os lugares, perdendo a essência dos mesmos.

Há uma tensão criativa da natureza, que nos leva a nos integrar: homens, seres, frutos, flores. Tudo se integra ou desintegra quando o homem rompe com essa relação pelo seu egoísmo ou ambição desmedidos. Nisso se quebra uma lógica espacial, quebra com a dimensão ontológica de tudo.

Como acreditou, no passado, Lévi-Strauss (1996) em seus Tristes trópicos, é impossível haver uma só história ou uma única captação desse imenso espaço de múltiplos acontecimentos, que de tão chocantes, chegam a ser inacreditáveis. Tal fato, na época rompeu com a linearidade do pensamento intelectual, então burocratizado e marxista, buscando criar uma escala dentro do espaço. A simultaneidade era a única forma possíveis de destacar tantas ocorrências variadas.

O documento expedido pelo Padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury em 1839 destaca sobre as rendas provinciais, notadamente na cidade de Bonfim, hoje Silvânia, no tocante à Casa de Câmara e Cadeia. Eram relatórios de uma época de dificuldades.

O Padre Gonzaga de Camargo Fleury, com sua influência no Clero e na política, possuía boa influência junto à Corte e conseguia transpor certas dificuldades muito específicas desse imenso interior brasileiro, no bojo do Cerrado, em Goiás.

Até então, por meio de uma economia insipiente, os arraiais que se tornaram vilas e posteriormente cidades em Goiás, durante o século XIX e primeiras décadas do século XX, originaram-se, em sua grande maioria, de patrimônios religiosos, em que um ou mais proprietários, doavam terras ao santo de sua devoção, por meio de documento público onde o beneficiário era a autoridade eclesiástica. Em Goiás, vários de seus patrimônios se desmembraram durante o século XIX em virtude do crescimento da agricultura e pecuária na região.

No período em que Leite de Moraes governou Goiás (1881-1882) já se percebia um fluxo migratório intenso para as regiões Sul e Sudoeste de Goiás na primeira metade do século XIX, intensificaram o fluxo de viajantes, migrantes e o transporte de mercadorias pela estrada do sul e já também na década de 1850, diante do apelo da população local e dos comerciantes foi construída uma balsa no Porto de Santa Rita do Paranaíba, parte integrante do Julgado.

Já na década de 1890 migrantes continuavam a afluir para além das fronteiras. Assim, pela estrada do sul passavam as boiadas procedentes do centro-oeste em direção aos mercados consumidores do sudeste e, por ali chegavam os principais produtos importados por Goiás do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

É lamentável que a historiografia brasileira e goiana pouco tenha se referido aos fluxos migratórios internos para a compreensão da dinâmica da ocupação e do processo colonizador de Goiás fora dos eixos de Vila Boa.

A localização geográfica do Cerrado, ao longo do tempo, fez com que esse Bioma-território, possuísse milhares de quilômetros de fronteira com outros biomas brasileiros, o que possibilitou a convivência com outras diferentes práticas de vida e de diversos valores.

Por muitos, ao longo dos anos foi considerado o “Bioma-território esquecido”, em razão de ser o mais central de todos biomas do continente sul-americano. Goiás era, de fato, o oco de mundo, perdido nos confins da terra.

O lugar é, pois, uma categoria geográfica fundamental, já que se refere a uma fração do espaço onde as pessoas convivem, circulam, idealizam seus conceitos, vivem as suas histórias, felizes ou infelizes. O lugar é instantâneo e reduzido. O lugar é construído e reconstruído sempre, na marcha ininterrupta da história.

Mesmo lugares desconhecidos, como o fez José de Alencar ao escrever Ubirajara, ao misturar verdade e ficção nos sertões goianos, sem nunca aqui estar, ou mesmo Machado de Assis ao escrever um conto passado em Santa Luzia de Goiás, mas nunca pôs os pés por aqui.

Goiás surgiu e o espaço foi conquistado pelo homem ao longo dos séculos.

E há, hoje, uma dissonância quanto ao uso desse mesmo espaço, ou seja, o adensamento populacional ao sul e os vazios ao norte, ambos nocivos ao desenvolvimento sustentável.

Era apenas o sertão, vasto sertão, tão bem descrito nas páginas magistrais de José Mauro de Vasconcelos (1920-1984) em seus romances pioneiros na divulgação do bravio Goiás (Rosinha, minha canoa, Longe da terra, Arara vermelha, Arraia de fogo, Kuryala, capitão e carajá) e que, hoje, são desconhecidas dos goianos novos, o que é lamentável.

Com a chegada dos aventureiros de todos os recantos, de outras capitanias do Brasil e até de além-mar, instaurou-se o sentido de território hoje observado. Passou-se do mundo da contemplação e uso racional do meio, para o insólito quadro da exploração aurífera, por si só a degradar o ambiente e os costumes por sua agressividade, permissividade e desajuste febril.

Formava-se, assim, nos primeiros dez anos de exploração das minas de Goiás, uma dolorosa Geografia de exploração do meio. Picadas eram abertas quase a esmo, a partir de notícias de descobrimentos de novas possibilidades de extração do metal precioso. E só isso mesmo interessava. Eram homens rudes, consumidos pela ambição e pressa numa exaltação febril, doentia, na consciência coletiva da posse. Nada mais importava não fosse apenas o ouro. Homens imorais também afluíam como o ouro nos aluviões.

Arraiais pequenos, incertos, perdidos entre feras humanas e animais eram esboçados na Geografia da febre. Tudo era ouro, até os mantimentos que chegavam ao preço de ouro. Crimes horripilantes eram cometidos na turbulência das paixões vis. Tudo isso com os tons épicos evidenciados pela Memória de Silva e Souza.

Os escravos eram o segundo ouro que nas minas de Goiás se destacavam. Eram usados até a morte no serviço brutal da febre do ouro. O metal amarelo parecia não acabar. Era o Eldorado. Nessa loucura, caminhos outros iam surgindo nas lendas que se espalhavam além dos limites ainda incertos da terra goiá, sobre o ouro eterno.

Assim, nos primórdios do chão goiano, o ideário de imensidão. Desde Desemboque, esta febre de ouro se alastrava sem cura. Ali, portal de Goiás, as lutas sangrentas entre brancos, caiapós e negros quilombolas também haviam se verificado desde os idos de 1700, nas encostas da Serra da Canastra; com muita agressividade dos negros que se organizavam em quilombos às margens dos rios Quebra anzol e Tengo-tengo (local onde o sangrento Bartolomeu Bueno do Prado ostentava o troféu de mais de quatro mil orelhas de escravos, que foram assassinados por seus “matadores de negros”) no caminho do povoado de São Domingos do Araxá, quando tudo ainda era Goiás no mundo do Cerrado!

Nessa luta sangrenta no chão vasto de Goiás setecentista, surgiu o “Arraial de Nossa Senhora do Desterro das Cabeceiras do Rio das Abelhas”, naqueles tempos que os nomes de rios ou pontos geográficos estavam agregados aos topônimos de localidades. Era o ápice da febre do ouro nos portais goianos.

Desemboque cresceu tão rápido e vertiginosamente que foi a primeira a se libertar do imenso julgado de Santa Cruz de Goiás; pois em 1783 já estava no ponto estratégico do Sertão da Farinha Podre, hoje o Triângulo Mineiro, com cerca de seiscentos habitantes. Com isso, passou a Julgado que se efetivou até 1816, quando passou à jurisdição mineira e foi suplantada pelo Arraial de Nossa Senhora do Sacramento e Uberaba.

Na matemática das minas de Goyaz, observada sob a égide da Geografia Econômica, as oitavas de ouro colhidas pelos escravos era a medida permanente. Nas primeiras minas, a medida de ouro recolhido era de uma oitava e meia por semana, isto nos arraiais de Vila Boa, Ouro Fino, Ferreiro, Barra, Meia Ponte, Trayras e Santa Cruz, os primeiros.

Nesse período de turbulência nesse território de bravos, a riqueza do homem se media por sua quantidade de escravos. Quanto mais escravos, mais rico. Na febre dos primeiros vinte anos de exploração, os mitos de ouro infinito foram criados e estes povoaram o imaginário de gerações seguidas, chegando mesmo aos dias atuais.

Eram os caminhos de Goiás, como frisou Chaul (1998), amalgamados na construção e ao mesmo tempo na decadência de valores, quando se pensou no limite da modernidade.

Ainda persiste o pensamento de uma glória perdida nos rincões goianos, como se aquele tempo ainda tivesse retorno. É o sebastianismo de Goiás! Lugares míticos como Araés, Correntes, Rio Claro, Martírios, Trahyras, Ouro Fino foram imagens recorrentes nos tempos da mineração e nos outros que se seguiram. Nas cidades do ouro, depois desprestigiadas, há uma nostalgia de passado, de riqueza, de grandeza acabada.

O ciclo do ouro, por mais permissivo que tenha sido, analisado geograficamente, identifica profundas mudanças no ciclo econômico, social e cultural do Brasil, pois foi responsável pelo deslocamento do eixo econômico do Nordeste para o Sul e Centro Oeste da Colônia; propiciou o despovoamento contínuo da Capitania de São Paulo desse período; provocou o alargamento do espaço brasileiro, por meio do recuo do Meridiano das Tordesilhas; foi responsável pelo surgimento de diversos núcleos urbanos, hoje prósperas cidades goianas, fomentou o surgimento de uma arte religiosa e devocional; além, é claro, de incentivar diversos movimentos nativistas posteriores. O ouro, visto geograficamente, foi válido para que se vislumbrasse no Brasil litorâneo, um outro vasto, fecundo e desconhecido Brasil interiorano.

Na Geografia febril do ouro houve delírio. Muitos caminhos, carregados de perigos e saques eram evitados. Abriam-se outros, aleatoriamente. O espaço goiano foi recortado por diversas novas veias, por meio do surgimento dos veios do ouro. Eram veias que varavam serras, chapadões, campinas e planaltos na exuberância do chão goiano. Os olhos dos homens ainda estavam injetados do calor da febre e não viam a beleza da paisagem.

Não era mais o chão da pilhagem rápida e fugidia. Era o chão da permanência. Outros caminhos, então, se abririam em novas veias que se desprenderiam dos veios.

Seria a Geografia da prostração, do desânimo inicial. Do ser perdido num espaço infinito, bravio, indomável, de “onde tiraram o ouro e deixaram as pedras”, como disse Cora Coralina.

Geografia do homem coberto de fadigas a pisar um território de medos em relação a um futuro incerto. Nos caminhos novos, o pensamento do que seria, então, nos limites a serem impostos geograficamente, os cenários da terra de Goiás.

 

(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, pós-graduado em Literatura Comparada pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutorando em Geografia pela UFG, escritor, professor e poeta – [email protected])

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia