História de uma “coincidência”
Diário da Manhã
Publicado em 1 de agosto de 2018 às 22:51 | Atualizado há 7 anos
Dona Maura e o senhor Olavo, seu esposo, residem, há mais de 50 anos, em Rio Verde. Vieram do interior paulista, berço de ambos e aqui, dadivosa terra, raízes criaram. Quando se conheceram, reciprocamente se enamoraram. Havia, porém, em tese, obstáculo para que se entregassem um ao outro: ele ,protestante desde a concepção; ela, desde quando a cegonha a encomendara, católico-romana. E havia um agravante: Maura tomou o hábito, fez-se freira. Não se preocuparam, todavia, com essas questões. Maura deixou o claustro, desprezou o rosário e as missas em latim, abraçou a Bíblia e foi, de braços dados com seu amor, para o templo erguido nos alicerces da Reforma. Casaram-se e desse leito brotou um só fruto, cujo nome é Sandra. Esta esposou Samuel, seu irmão na fé. A exemplo do Olavo e da Maura, são felizes, residem em Rio Verde e permanecem fiéis à doutrina cristã-presbiteriana. Sandra e Samuel têm dois filhos: Lucas e Gumercinda.
Antes que essas coisas jubilosas ocorressem, bem antes, quando Maura era menina com mais ou menos 12 anos, grande tristeza atingira o seu lar. Setembrino, com 45 anos de idade, seu genitor, abandonou a esposa, senhora Carminda, e com outra mulher foi embora, nada deixando para que sua ex-consorte e a filha sobrevivessem. A fome chegou.
Maura foi trabalhar em um hospital, embora fosse menor de idade. Era comum – e o foi por quase toda a história deste país – o trabalho infantil. Hoje é proibido, mas ainda o praticam. Afinal, o Brasil é o Brasil. Paciência.
Durante décadas e décadas, neste país havia muito veneno nas casas de residência e mesmo nos prédios comerciais. Contra baratas, ratos, formigas. Faltavam, inclusive, cuidados com relação a isso, o que resultava em acidentes fatais. Maura resolveu se matar, tão desolada se achava pelo abandono paterno. À cabeceira da sua cama (há diferença entre “à cabeceira” e “na cabeceira”. No caso em pauta, “à cabeceira”) havia um pequeno armário sobre o qual se deixavam alguns objetos, incluso veneno. Maura, deitada de “barriga para cima”, como se diz, se lembrou de uma lata que guardava a morte. Escuro se achava o dormitório. Sem se mudar de posição, levou a destra para apanhar essa pequena vasilha, mas pegou foi um livro, pois sua mãe, por “coincidência”, a retirara e ela não o sabia. No lugar da morte, a vida. “Coincidentemente”, era um exemplar da Bíblia. Maura se sentou no leito, acendeu a luz e aleatoriamente abriu a luz. Por “coincidência”, a página que se arreganhou diante dos seus olhos continha esta mensagem:
“Porque se meu pai e minha mãe me desampararem, o senhor me acolherá.” (Salmo 27:10).
Alguém falou que a solidão é a sala de audiência com Deus. Na solidão do dormitório escuro e silencioso, o Senhor falou à pequena até então desolada. Paz indescritível lhe invadiu. Em vez de deserto, jardim. Felicissima, fechou a Bíblia, devolveu-a ao armário e se entregou ao mais delicioso sonho de sua vida. Sentiu-se segura, totalmente segura. Não sei quanto tempo se passou para que ela fosse para o convento, de onde saiu para os braços do Olavo.
Essa história me foi contada pela dona Maura. Troquei nomes das personagens, a essência preservei.
(Filadelfo Borges de Lima – filadelfoborgesdeli[email protected])