Humildade não pressupõe subserviência
Redação DM
Publicado em 18 de maio de 2018 às 00:31 | Atualizado há 7 anos
A elasticidade conceitual das linguagens sempre facilitou o uso indiscriminado das palavras com, cada vez mais, distintos e confusos significados. E quase sempre, manipulamos forçosamente os sentidos das ideias expressas por elas, segundo nossos interesses nem sempre nobres.
Geralmente, quando se trata das virtudes, damos a cada uma delas as definições que mais nos convenham. E que menos exijam de nós. Assim, navegamos tranquilos pelos mares das relações humanas nos considerando virtuosos, quando só nos enquadramos nos preceitos porque os estupramos, levando-os a significar o que nos é mais útil e oportuno em cada momento.
Umas das palavras extremamente abusadas, geralmente para impor aos outros a submissão aos nossos caprichos, é a humildade. Radicalmente exigida dos outros, e relativamente praticadas por nós, a humildade, por isso, é sempre confundida, ou até mesmo travestida, de servilismo, subserviência que o próximo deve exercer para nosso conforto.
Agostinho de Hipona, filósofo cristão africano que viveu entre os séculos IV e V da nossa era, mas que fascina até hoje por sua perspicácia psicológica, ensinava que a humildade “não nos faz maiores que ninguém, mas também não pode nos fazer menores”. Ser humilde, para ele, não é ser o capacho mudo onde os oportunistas limpam os pés sujos de tramoias e jogadas indecentes e egóicas. Mas, reconhecer o alcance da nossa visão, não opinando sobre o que desconhecemos, mas também não nos valer da falsa modéstia para nos omitir nem nos comprometer nos assuntos que nos dizem respeito.
Para os covardes, a humildade é a capa do desinteresse e da indiferença pelo destino da alma humana. Por humildade, não assume responsabilidades e aceita o chicote cruel da injustiça sobre o lombo arcado do caído.
Para os espertalhões, a humildade serve de esconderijo para enganar as vistas dos simples e usufruir de benesses e proteção. E a astúcia do aproveitador fica maquiada de humilde acatamento e simplicidade. Vestem-se de andrajos como um mendigo, mas pensam e agem com a arrogância do déspota. Ostentam um olhar complacente mas emitem juízos casuístas e interesseiros para satisfazer os poderosos.
Contudo, a humildade não pode servir para afofar os cômodos acolchoados dos leitos dos preguiçosos, dos que não se dispõem de mover um dedo ou todo o corpo e mente em defesa do certo, do justo e do verdadeiro. Valer-se da desculpa da humildade para calar-se diante do erro é afiar a lâmina e fortalecer o braço que apunhala à traição.
Na atualidade tem sido disseminada a ideia de que “é preferível ter paz a ter razão”, como se a paz fosse a ausência do debate, da defesa constante dos valores da vida. Para estes a paz é sinônimo de conforto e de ócio estéril e de mórbida estagnação. A paz dos cemitérios onde a morta aquieta os ânimos e iguala os caracteres.
O pior é quando alguns usam as palavras dos mestres do espírito para defender suas falácias, distorcendo os ensinamentos fundamentais dos sábios em favor de seus escusos e ilícitos desejos. Há cristãos que se valem da paixão de Jesus de Nazaré para tentar refutar ou forçar quem afirma verdades que não são do seu gosto, acusando de heresia que as expressa. Tentam impor o silêncio da aceitação de seus ardilosos argumentos apelando para o dever alheio da humildade.
Se esquecem que a própria morte do Sublime Profeta Judeu da Galiléia é consequência de suas palavras e ações em favor da verdade. Se ele, que consideramos o Cristo de Deus, tivesse preferido o comodismo da “humildade” e vivido em sua pacata aldeia sob o jugo do desamor, da maldade e da ignorância humana, apenas para não correr o risco de desagradar os mantenedores do iníquo status quo, certamente morreria bem mais confortavelmente. Por isso, o “ser cristão” não dá base sustentar a exigência do silêncio e a inércia criminosos sob a falácia da humildade.
Talvez, a verdadeira humildade seja, de verdade, erguer os olhos, o ombro e a voz para defender anunciar a igualdade e a consequente obrigatoriedade de não nos supormos melhores que ninguém, mas, também não admitir nem propalar que alguém seja melhor e mais digno que nós. Não nos julgarmos perfeitos mas não acreditar nem agir como se alguém estivesse isento de nossas análises, críticas e denúncias.
Ser humilde não é ser como a escabelo imóvel que tudo suporta sem protestar, mas sim, ser como a água que contorna os obstáculos, quando pode. Mas que, ao ser impedida, rompe as barreiras com força, firmeza e estardalhaço para seguir o rumo que a vida lhe deu.
O silêncio diante do erro não é humildade porque não é uma virtude mas um vício. E nenhum vício é amigo da Vida, mas companheiro da dor, da morte e do caos!
(Ton Alves, jornalista, professor de Filosofia, ex-frade franciscano, assessor da CNBB e monge universalista, cristão vetero católico e fundador do Projeto Casulo de Luz)