(In)feliz coincidência
Redação DM
Publicado em 28 de setembro de 2018 às 04:30 | Atualizado há 7 anos
Coisa interessante é a tal da coincidência, em que um fato aparentemente normal pode, pelo inusitado do momento, transformar-se em algo que pode até virar notícia. Na verdade coincidências ocorrem a todo momento: falta-nos, talvez, a capacidade de registrá-las, ou mesmo porque a gente não vive na diária assuntando as coisas decretado, mesmo porque todo mundo, pelo menos teoricamente, é de ter o que fazer na vida.
Morando lá nas alterosas com meu irmão Ié, na pensão de dona Salomé, escrevendo em jornais e ouvindo a crônica policial pelo rádio do carro, ouvi um fato que pode ser incluído no rol das incríveis coincidências.
Quer ver? Então assunte só.
Uma jovem ia pela Avenida Afonso Pena (a principal de lá), quando percebeu estar sendo seguida, com certa insistência, por um rapaz. Como não o conhecia, tratou de apertar o passo, a fim de livrar-se do persistente acompanhante, que parecia querer guardar a mesma distância dela: quando a moça parava, pretextando espiar uma vitrina ou curiar um preço numa loja, ele disfarçava, olhava pra cima, grelava o olho no relógio de pulso e retomava a marcha paciente, tão logo ela rompia o passo com a bolsa tiracolada ao ombro.
Como o local era movimentado, ali nas proximidades das Paraça Sete, nagrejando de gente, ela acabou por não dar ligança em ter ao lado aquele jovem, até meio tiposo e bem apessoado e que, a bem da verdade, não tinha jeito de marginal: ao contrário, parecia um pacato transeunte que o acaso colocara ao seu lado naquele momento. Ademais, com aquele trança-chico de gente num vaivém de formigueiro, ele não era nem mané de tentar um assalto, porque na hora do pega-pra-capar, o povo era até riscoso de linchá-lo, ou mesmo deixá-lo estropiado de tabefe para a polícia completar depois.
Pois bem, quando eles se aproximaram de uma esquina, já aparentavam dois conhecidos para quem os via, tão próximos estavam um do outro. E lado a lado andaram bons pares de passos, passando pela calçada das “Casas Slopper”, “Lojas Guanabara”, quase chegando ao “Cine Brasil”.
Assim é que, num determinado instante, um fotógrafo (daqueles que ganhavam a vida registrando flagrantes na rua), cuidando tratar-se de um parzinho de namorados, acionou a máquina e aproximou-se da mocinha com o papelucho pra ela ir buscar a foto no dia seguinte no estúdio. A moça argumentou que não queria a foto, que sequer conhecia o seu acompanhante, rasgando ali mesmo o papel, para desconsolo do fotógrafo, que via esvair-se a possibilidade de faturar mais uns trocados para inteirar o ganhame do dia. O rapaz, de sua banda, ficou ali flauteando e dissimulando no olhar de uma vitrina, de olho no resultado do leva-não-leva da foto.
Desvencilhando-se do insistente retratista, retomou a marcha. Nem bem andou meio quarteirão, o tal moço, aproveitando-se de uma distraçãozinha da moçoila, que ia entrando no “Café Pérola”, arrebatou-lhe a bolsa, saindo às mil, confundindo-se com a multidão que formigava. Nem o tradicional “pega, ladrão!” ela teve ânimo de gritar, pois, embora previsível, ela nem imaginava que um rapazinho de ar ingênuo por fora fosse, por dentro, refinado descuidista.
Aí, parece que o anjo da guarda lhe deu uma demão e lhe cutucou a lembrança: há poucos instantes, o retratista registrara o flagrante de estar junto ao larápio e, quem sabe, ele ainda não estaria por ali? E, já passando em frente ao “Edifício “Helena Passig”, do outro lado da “Praça Sete”, virou os calcanhares de volta, encontrando o fotógrafo quase no mesmo lugar, ganhando a vida em registrar flagrantes e convencer os flagrados a levar a foto tirada sem prévia consulta.
Este lamentou não poder ajudá-la, pois ela mesma rasgara o papelzinho-referência (àquela altura, preciosíssima pista), pois a foto devia, sem sombra de dúvida, ter registrado a cara do meliante, confundido, minutos atrás, com seu namorado. Mas aconselhou-a a ir ao estúdio um pouco mais tarde para tentar, pelos negativos, identificar a foto que acabara de tirar.
No fim da tarde – o rapaz marcara a hora – ela foi, identificou o salafra sem dificulda-des, pediu uma cópia e foi à Polícia, que deve ter visto no azarado descuidista um velho conhecido, pois em questão de horas ele estava atrás das grades.
São as tais coincidências, que só acontecem uma vez ou outra, e esta é digna de servir para uma cena hichcockiana, pois, de resto, o espectador acabaria acreditando tratar-se de coisa de TV, que só acontecem em filme ou novela.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])