Intolerância opinativa
Redação DM
Publicado em 4 de outubro de 2018 às 03:21 | Atualizado há 7 anos
Há cerca de 8 anos imaginei que a humanidade encaminhasse numa crescente redução da capacidade de se expressar, até chegar ao ponto troglodita do grunhido ou berro. Óbvio que essa conclusão era absurda. Mas foi motivada pela frequente perda da eloquência e retórica.
Antes do whatsapp, as mensagens de texto eram minimalistas e depois foram substituídas por símbolos, atualmente os emoticons. Um legal, dedo pra baixo, sorriso, choro, cara de bravo, personagens, paisagens e objetos etc. Aliado ao fato de o hábito de leitura ter se resumido a uma parcela ínfima da população, que perdeu conteúdo e corpo contextual de assuntos.
As conversas populares ficaram cada vez mais ligadas a fofoca, moda, celebridade e esporte. Qualquer debate sobre tema mais denso ficaria fadado a incapacidade argumentativa. Uma geração a mais e as conversas, que antigamente eram produzidas pelas articulações das mandíbulas e das cordas vocais, agora quase se resumem a ciscadas de dedos em telas touchscreen. Óbvio que sempre existirão exceções.
Os pais ainda pouco regram limites, ofertando tudo numa inconsciente compensação de se desejarem amados pelos filhos. Soma-se a isso a pouca bagagem literária, a preguiça dos estudos; o costume de ficarem expostos excessivamente em condições passivas de plateias (TVs e telas: celulares, computadores, tablets). Explico: a leitura desenvolve a construção de imagens às cegas, propiciando a imaginação e a inteligência contextual. As telas passam de mão beijada todo o cenário, com riqueza de detalhes, no entanto, sem grande quantidade ou qualidade de situações. Novamente: exceções sempre existentes. Veja as novelas: mesmo contexto, herois, vilões, pares românticos, baixarias, suas crises e soluções, seus conflitos e resoluções. Uma receita de bolo antiga para constantes apreciadores abusarem suas distrações. Com seus tempos ocupados, não mergulham em densidade pontual.
Mas, não se pode confundir a informação disponível (que é vasta) com a formação individual (que é reduzida, lenta e gradativa). Hoje uma criança tem nas mãos um smartphone com capacidade de ter mais quantidade de informação do que o Rei-Sol (Luís XIV, em pleno absolutismo francês do século XVII, que centralizava o maior conhecimento possível de tudo a seu dispor, incluindo o conclave clerical da Igreja e sua antiga biblioteca). Se, por exemplo, eu tenho um HD que contém quase toda a literatura mundial, em número maior do que a Biblioteca de Alexandria (que foi o ápice do conhecimento no antigo Egito, queimada na era de Júlio César), isso não me torna um escritor razoável, muito menos sequer um mediano leitor (mas sim, com o passar do tempo, com o mergulho efetivo em cada livro).
Talvez por estarmos acessíveis a tanto, aprofundamos cada vez menos (e em poucos!). O fato de absolutamente tudo estar na internet, incluindo o que não presta, não faz do dono do celular um historiador, um médico, um fascista, ou um fabricante de bombas cujo primeiro passo foi guiado por youtubers (assemelhados) e seus canais.
Antes o orkut já tinha saído da moda de massagear o ego, de postar textos e fotos de bichos, selfies, passeios, academia e pratos de comida. Agora a intolerância humana, estimulada por esse ego elevado, intransigente a tal ponto de vociferar loas em achincalhes ríspidos. São ofensas graves disparadas aos discordantes e dissidentes. Não importa o assunto: religião, esporte, opinião ou política. Essa última sai faísca e risca explosão. O cidadão desavisado que proferir seu voto público será alvo da escória, seja da direita, da esquerda ou do meio. Mas na realidade, o fato de o cidadão ter se inscrito no Instagram ou Facebook não o torna especialista em direito constitucional, nem mesmo ser capaz de emitir uma opinião conclusiva sobre qualquer assunto. Mesmo assim, o insistente o faz como palanque em trio elétrico e microfone… Não satisfeito, ainda quer arrebanhar eleitorado e pisotear a discórdia, se integrando na escória (isso foi um julgamento, e todo ele é por natureza errado: perdão pela piada).
Não se aceita hierarquia de conhecimento alheio por medo. Na verdade, atrás de todo ódio grande, existe um medo maior. Esse medo é expresso pela agressividade. Qualquer bicho corre, seja para o ataque ou proteção. O felino acuado agride. Se a voz da internet, da TV e da vida estiver muito chata, mude de assunto. Quem quiser se expressar: converse; quem quiser discutir: fuja. Ficar na frente do bicho acuado é levar agressão. Ninguém consegue salvar o outro da sua própria ignorância. Aliás, ela cria uma zona de conforto muito cômoda.
Étienne de La Boétie, na obra O discurso da escravidão voluntária (séc XVI), começa citando Ulisses, da Ilíada de Homero (“muita gente a mandar não me parece bem; um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém”) escreveu sobre a escravidão, sua zona de conforto e a tirania, “que subtrai-lhes toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de pensar… Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores, não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos… Não basta que lhe obedeçam, têm de lhe fazer todas as vontades, têm de se matar de trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem, de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu”. Essa zona de conforto produz uma ilusória liberdade, por tirar do “escravo” a necessidade de escolher.
Somos múltiplos. Cada um tem em algum ponto mais formações e capacidades do que nós. Não há alguém em patamar supremo. Nem mesmo Jesus foi unânime; não salvou a pátria, mas somente assuntos da alma, ou melhor, do espírito. Quem dirá um maluco, um economista, um barbudo e seu pupilo, um cantor, um marechal, um economista, um pastor, ou qualquer outro ser humano. Quem ficar cantando alto no manicômio será atingido por pedras. Mas, quem nunca pecou, que atire a primeira! Não fale isso… Hoje em dia os loucos atirarão qualquer detrito que estiver na frente. Até a próxima página!
(Leonardo Teixeira, escritor)