Opinião

Jesus ao pé da letra

Redação DM

Publicado em 5 de novembro de 2016 às 01:34 | Atualizado há 9 anos

Há nos Evangelhos determinadas passagens que não podem ser tomadas ao pé da letra, por não se harmonizarem com o caráter de Cristo, palavras que lhe são atribuídas mas que desafinam da sua sublime grandeza moral. Como ele jamais escreveu qualquer dos conceitos que nos são transmitidos como de sua autoria, e como tudo que sabemos dele foi escrito por homens falíveis, depois de sua morte, ao longo de vinte séculos de revisões, versões e traduções em cerca de dois mil idiomas, é fácil identificar e relegar as discrepâncias. Ou o Mestre não disse o que nos choca ou não entenderam o que ele falou.

Observa Allan Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo: “basta que um erro tenha sido cometido uma só vez para que fosse repetido pelos copistas, como se vê, com frequência, nos fatos históricos”. Isso se verifica, por exemplo, nesta passagem aparentemente absurda, narrada por Mateus e Lucas: “E outro de seus discípulos lhe disse: – Senhor, permite-me que primeiro vá sepultar o meu pai. Jesus, porém, disse-lhe: – Segue-me e deixa aos mortos enterrar seus mortos”. ( Mateus, 8: 21 e 22) “E disse a outro: – Segue-me. Porém ele disse: – Senhor, deixe que primeiro eu vá e enterre o meu pai. Mas Jesus lhe disse: – Deixa aos mortos enterrar os seus mortos; porém tu vai e anuncia o reino de Deus”. ( Lucas, 9: 59 e 60)

 

Significado mais profundo

Que podem significar estas palavras: “Deixa aos mortos enterrar seus mortos?” Elas jamais poderiam ser uma censura do Cristo ao filho que  considerava um dever de piedade filial sepultar o corpo do pai. Certamente, essa frase insólita contém um significado mais profundo, que só o conhecimento mais amplo da vida espiritual pode fazer compreender. O respeito que se tem pelos mortos não se refere à matéria em decomposição mas à lembrança e à saudade do espírito eterno ausente. Era isso que aquele homem não podia assimilar por si mesmo, levando Jesus a ensinar-lhe, como se dissesse:

– Não vos inquieteis com o corpo, preocupai-vos antes com o espírito. Ide ensinar o reino de Deus, ide dizer aos homens que sua pátria verdadeira não está na Terra, mas sim no Céu, pois lá é que flui a vida verdadeira.

Existe um livro de sabedoria chamado Fonte Viva, ditado por Emmanuel, através da Francisco Cândido Xavier, em 1956. Contendo 180 mensagens, interpretações de versículos dos quatro Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos, é a obra de número 55 do total dos 412 livros trabalhados pelo mais fecundo e mais famoso médium da atualidade. Na sua apresentação, o autor espiritual adverte que “a morte a todos nos reunirá para a compreensão da verdadeira vida”.

Na página 319, sob o título “Acorda e ajuda”, encontramos uma das mais lúcidas e objetivas lições sobre o polêmico “deixa aos mortos enterrar seus mortos”. Ei-la:

– Jesus não recomendou ao aprendiz deixasse “aos cadáveres o cuidado de enterrar os cadáveres”, e sim conferisse “aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos”. Há, em verdade, grande diferença. O cadáver é carne sem vida, enquanto que um morto é alguém que se ausenta da vida.

Há muita gente que perambula nas sombras da morte sem morrer. Trânsfugas da evolução, cerram-se entre as paredes da própria mente, cristalizados no egoísmo ou na vaidade, negando-se a partilhar a experiência comum.

 

Sepulcros de ouro e ilusão

Mergulham-se em sepulcros de ouro, de vício, de amargura e ilusão. Se vitimados pela tentação da riqueza, moram em túmulos de cifrões; se derrotados pelos hábitos perniciosos, encarceram-se em grades de sombra; se prostrados pelo desalento, dormem no pranto da bancarrota moral e, se atormentados pelas mentiras com que envolvem a si mesmos, residem sob as lápides, dificilmente permeáveis, dos enganos fatais.

Aprende a participar da luta coletiva. Sai, cada dia, de ti mesmo, e busca sentir a dor do vizinho, a necessidade do próximo, as angústias de teu irmão e ajuda quanto possas.

 

(Jávier Godinho, jornalista)

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