Lacunas sociais e institucionais
Diário da Manhã
Publicado em 13 de março de 2018 às 21:43 | Atualizado há 7 anos
A justiça de transição, ou, o direto penal do vencedor, é definida como “um processo de julgamentos, depurações e reparações que se realizam após a mudança de um regime político para um outro”. No Brasil pós-golpe as instituições de justiça já não disfarçam que as persecuções penais obedecem a um não-legislado direito penal de transição, no qual as normas escritas são consideradas tacitamente revogadas e substituídas pelos talantes do julgador.
O mundo passa por turbulências sociais e, ao que parece, as conquistas da humanidade expressadas em valores e princípios de afirmação da vida e da dignidade da pessoa humana, elevas à categoria de garantias universais após a segunda Guerra Mundial, estão em franca trajetória inversa às aspirações civilizatórias. Há um crescente movimento xenófobo mundo afora, o recrudescimento da intolerância e, concomitantemente, o rompimento com valores sociais e jurídicos. Percebe-se que nesses tempos de ódio exacerbado há uma utilização de exercícios jurídicos dirigidos à supressão de direitos, em especial aqueles direitos que visam tutelar os direitos humanos fundamentais.
Um velho aforismo diz que quando o direito se enfraquece a tirania mostra as suas faces.
Em poucas fases da história da humanidade, a partir da Escola Penal Clássica, o estado de direito esteve tão ameaçado e tão instável. Mesmo em períodos de conturbações políticas, com nefastas supressões das garantias individuais, não houve tanta insegurança jurídica. Por mais paradoxal que pareça ser, no Brasil, durante o regime ditatorial, cujos códigos penais tiveram inspiração fascista – o ordenamento jurídico, ainda que limitando as garantias individuais, transmitia mais segurança e garantismo que agora; Às vezes, por encurtar, objetivamente, as esperanças dos jurisdicionados frente à tutela jurisdicional, outras vezes, pelo caráter rígido, inflexível das leis, não dando margem a interpretações lacônicas ou de cunho meramente subjetivo, consubstanciadas na parêmia “dura lex, sede lex”.
Portanto, ainda que durante o período negro do cerceamento às liberdades civis e das garantias fundamentais, era absolutamente impensável que um juiz de direito, responsável pela tomada de decisões de elevada importância e reflexos em toda uma sociedade, declarar que toda a sua atuação como magistrado terá como fundamento e inspiração a Bíblia.
Em qualquer sociedade civilizada, e alicerçada nos mínimos princípios e garantias jurídicas, uma manifestação dessa natureza causaria enorme perplexidade e sentimento de insegurança e temor de, a qualquer momento, vir a sofrer alguma perseguição criminal fundada em preceitos bíblicos, aos talantes do julgador, em seus desvarios de intérprete de conceitos de “justiça” meramente subjetivos. Entretanto, o que se percebe é a propagação de resignação e anuência da sociedade, com manifestações de apoio, com maior ênfase através das redes sociais.
Tudo isso é muito preocupante, considerando que nós, os ocidentais, aprendemos a acreditar que os países árabes, notadamente os de religião muçulmana, são habitados por terroristas, fanáticos fundamentalistas que tentam impor seus dogmas religiosos através da disseminação da intolerância violenta. Para tanto, apregoam o ódio contra quem não seguir seus preceitos sectários e empenham-se em eliminar seus “inimigos”.
No Brasil não é diferente. Entretanto, guarda uma peculiaridade surreal: há um ódio de classe. A sociedade elege aqueles que deverão ser o alvo de ataques e execração pública e os que devem ser eliminados ou, não raramente, conservados no ostracismo e utilizado como mão de obra barata é a classe pobre, principalmente os das classes de odiados: os que são afeitos às ideias socialistas.
A classe política, associada a segmentos midiáticos preponderantes, empenha-se em árduo trabalho de alienação social, adestrando mentes para acreditarem que a política deve ser encarada como um espectro maniqueísta. Ou a pessoa está do lado do “bem”, apoiando os políticos e segmentos sociais da “direita”, ou, está do lado do “mal”, os que difundem políticas e deias rotuladas como sendo de “esquerda’. A partir disso, constroem algo ainda mais sinistro, associando a “direita” como sendo a que tem relação com a “vontade de Deus”, e a “esquerda”, os ditos “comunistas”, como sendo as pessoas defensoras das obras do “Diabo”.
Em um país fundamentalista religioso disfarçado como o Brasil, o terreno é fértil para a propagação desse embuste. Os órgãos legislativos, tanto o federal quanto os estaduais e municipais, estão infestados de representantes dos segmentos religiosos e as propostas de leis e de políticas públicas quando não são intencionadas ao controle dogmático da sociedade, através da imposição de um credo, são intentadas para a nefasta e cada vez mais intrusiva ingerência na esfera da vida privada das pessoas.
Esse é apenas um dos perigos do “vácuo legal”, ou, como dito alhures, durante o período do “direito de transição”. Outro fator de risco é a propensão para o surgimento de “heróis” caricatos. E isso no Brasil também está em franca ascensão. Por uma questão de justiça, é preciso esclarecer que isso não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. A eleição nos EUA de uma pessoa abjeta como Donald Trump, demonstra que essa tendência transpõe fronteiras.
No Brasil, causa estarrecimento ver a massa sendo conduzida ao abismo da ilusão e, repetindo o discurso do opressor, eleva à categoria de “heróis” os hipócritas, os caricatos, os corruptos, os prevaricadores, os latrocidas. Desta forma, juízes e promotores emulativos, tendenciosos, pandilheiros e aliados ao que há de mais sórdido, são catapultados à condição de “salvadores da pátria”.
Quando impera o caos, rompe-se o sentimento de unidade e de identidade nacional. Estamos, portanto, imersos em um terreno enlodado pela quase absoluta falência moral, ética, onde o sentimento de nação é substituído pelo egoísmo; e quem é mais hábil em construir um discurso embusteiro e de ódio torna-se imediatamente o representante de uma legião de zumbis, órfãos de paradigmas de liderança social e, internamente, indigentes intelectuais.
Nesse período de transição social, política, jurídica, os que se arvoram “vencedores” suplantam todos os instrumentos legais de proteção social. E, quando julgam e governam à margem da legitimidade, o fazem tomando por parâmetros “legais” e “morais” os seus conceitos abstratos, subjetivos, dogmáticos. E assim, a sociedade, conduzida por uma classe política e por instituições sectárias, caminha rumo ao efetivo fundamentalismo.
Quando o “vencedor” se investe do poder pelas vias ilegítimas, é providencial eliminar a segurança jurídica de modo a permitir ao déspota os meios de conservar-se no poder. A manipulação das leis, através de decisões com nuances pirotécnicas e cunho sectário, aos desígnios e conveniências do grupo dominante, é um dos artifícios clássicos dos quais lançam mãos os tiranos.
As pessoas, subtraídas de sua capacidade de pensar por si mesmos, entregam-se, como um rebanho adestrado, às inescrupulosidades dos manipuladores. Diante da absoluta ausência de uma Ética-Maior, a sobrevivência pessoa passa a depender da adesão à uma imbecilidade coletiva.
Não há nenhuma lei – legal ou moral – a reger o bem comum – porque bem comum não há mais; há, apenas, um salve-se quem puder.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])