Le Renard
Diário da Manhã
Publicado em 26 de dezembro de 2017 às 01:23 | Atualizado há 7 anos
Desculpem-me os leitores. O título em francês faz parte da historinha que irão ler, como verão.
Meu pai, engenheiro civil, trabalhou durante alguns anos na construção da Estrada de Ferro Central do Piauí, com sede em Parnaíba, cidadezinha charmosa no delta do rio do mesmo nome. Minha irmã mais moça e eu nascemos lá, numa casa de fachada art-déco, com três janelas de frente e uma varanda lateral sombreada de madressilvas.
A economia do norte piauiense convergia para Parnaíba, pelo que sempre havia hóspedes em casa, parentes de minha mãe que vinham a negócio ou a passeio. Era o caso dos primos Domingos (Dudu) e Josefa (Zefinha): ele, baixinho, careca e introvertido, estudou farmácia no Recife, onde conheceu a futura esposa, mas optou por ser fazendeiro; ela, exuberante, vaidosa e falante, acompanhou-o de bom grado na empreitada.
Foram morar na fazenda Santa Rita, antiga sesmaria cravada no médio vale do Rio Parnaíba. Dinâmicos e trabalhadores construíram um patrimônio respeitável que administravam em parceria: o marido cuidava das plantações, das benfeitorias e do gado vacum e cavalar; a esposa respondia pela horta, o apiário e a criação de galinhas e carneiros, vendidos às embarcações que atracavam no porto do rio.
Os dois filhos do casal estudavam em colégios internos. Sozinhos e financeiramente abonados, Dudu e Zefinha davam-se ao luxo de anualmente “voltar à civilização e viajar para o Sul”, como diziam – ou seja, ir para o Rio de Janeiro, de onde seguiam para a badalada estância hidrotermal de Poços de Caldas. Terminada a “estação”, retornavam à então capital federal; visitavam familiares, iam ao cinema, ao Cassino da Urca, ao teatro de revista. E Zefinha saía às compras, múltiplas compras de roupas, calçados, jóias, perfumes, cosméticos, bibelôs, enfeites etc.
Voltando ao Piauí, hospedavam-se novamente conosco. Era uma festa: a tagarelice da Zefinha, as novidades; mais que tudo, os presentes.
Em uma das vezes, chegaram do Rio de Janeiro às vésperas da estréia local do filme “E o vento levou”. Acontecimento aguardado com ansiedade, a sociedade parnaibana estaria presente, os cavalheiros de terno e gravata, como de praxe; as damas, de salto alto, vestidos e complementos elegantes.
Zefinha e Dudu resolveram demorar-se mais um dia a fim de participarem do evento. Frustrada por não poder assistir ao filme – impróprio para crianças – fiquei bisbilhotando os preparativos dos adultos. Meu pai, na sala, lia jornal e esperava pelos demais; a ele veio juntar-se o primo Dudu, enquanto as senhoras davam os últimos retoques à toalete.
Lembro-me que minha mãe estava com um vestido azul, de saia plissada e aplique de renda na gola; achei-a elegantérrima. Por último, surgiu Zefinha com um pretinho decotado; sobre os ombros, algo que não consegui identificar: parecia um gato peludo, cujas extremidades caiam-lhe sobre o colo.
Ela deu uma voltinha e perguntou:
– Que tal meu vestido? É da Rua do Ouvidor. O preto é a cor da moda, o chique dos chiques!
Pegou uma das pontas do gato – que não era gato – enrolou-a no pescoço e desfilou diante de nós:
– “Mon renard” custou uma fortuna; Duduzinho me deu de presente. Merece um beijinho, o Duduzinho.
Dito e feito, beijou de leve a careca do marido, cuidando de não manchá-la de batom. Ele sorria encabulado. Minha mãe estava se divertindo e provocou:
– É raposa mesmo?
Foi a deixa:
– Claro que é raposa, “ma chérie”! Francesa, legítima. Toda a gente está usando “renard” – ela garantiu. Eu olhava fascinada para o bichinho macio enroscado no pescoço da Zefinha. Só depois vim saber que era a última moda no inverno europeu: uma espécie de cachecol de pele, tendo nas extremidades um focinho e um rabo de raposa.
Meu pai dobrou o jornal e seguiu rumo à sala contígua, seu escritório. Sério, chamou minha mãe. Dentro de alguns minutos, ela saiu com a fisionomia meio tensa. Ao lado de Dudu, Zefinha acariciava “le renard”. Com ar casual, minha mãe falou:
– Está tão quente! Esse calor do Piauí nem deixa as pessoas serem elegantes. – E, para a Zefinha: Você deve estar sufocada, usando o seu “renard”.
– Não ligo para o calor – ela respondeu. Quando me virem no cinema, a inveja das outras mulheres vai ser refresco!
Meu pai continuava trancado no escritório. Minha mãe bateu à porta, entrou, tornou a sair. Visivelmente constrangida, dirigiu-se à prima:
– O cinema é velho, cheio de pulgas; e se as pulgas infestarem seu “renard”?
Caiu a ficha e Dudu pareceu entender. Chamou Zefinha à parte e falou em voz baixa por algum tempo. Ela fazia que não com a cabeça, passava a mão no “renard”; até que, quase chorando, entrou no quarto de hóspedes. Demorou um pouco; ao sair, trazia um pano colorido sobre o vestido preto.
– Vocês têm razão – ela disse. Está muito quente. E sabe do que mais? Não vou usar meu “renard” nessa terra de bugres. Vou de xale espanhol.
E saíram todos para o cinema.
No dia seguinte os primos viajaram. Ainda intrigada com o que vira, ouvi uma conversa que me esclareceu o desfecho do episódio. Minha mãe se queixava ao meu pai que ele a fizera pressionar a Zefinha para que se livrasse do “renard”; e que morrera de vergonha ao fazê-lo! Como ele risse com gosto, a revoltada esposa quis saber:
– E se ela não tivesse trocado o “renard” pelo xale?
– Não haveria cinema – meu pai garantiu. Eu jamais sairia de casa com a Zefinha levando aquele bicho no pescoço!
(Lena Castello Branco, escritora. E-mail: [email protected])