Leitos hospitalares são substituídos por instituições “sem médicos”
Diário da Manhã
Publicado em 23 de agosto de 2016 às 02:43 | Atualizado há 9 anosOntem recebemos na unidade juvenil do hospital psiquiátrico que eu dirijo três homens com uniformes militares. Disseram que faziam parte de uma fazenda de recuperação evangélica com “regime militar” e que estavam lá para retirar, a pedido do pai, um paciente grave , com psicose tóxica (cannabis/maconha). Disseram que sua unidade não tem médico, o que existe vai lá uma vez a cada 15 dias, mas que eles não tem medo de pegar pacientes psiquiátricos graves: “A gente tem até uma tabelinha: 1/ para alcoolismo a gente dá isso. 2/ para maconha a gente dá aquilo. 3/ para agitação a gente ministra aquilo outro, etc. O pai optou por retirar de nosso hospital porque nele o pai de crianças e menores precisam ficar de acompanhante, e o pai queria ficar livre da incumbência”.
Na semana passada recebemos um rapaz de 18 anos, com sua mãe, dizendo que já estava cansado de ficar na “solitária” de outra casa de recuperação. Lá eram medicados pela “dona”, segundo eles uma missionária evangélica casada com outro missionário. Ela seria, segundo o rapaz traumatizado, enfermeira do Samu, de onde , segundo ele, ela retiraria medicações para dar para os internos. Segundo ele, “ainda nesta semana eles passaram um apuro danado, pois um interno quase morreu com uma dose forte de neozine que deram para ele”. Neozine ( levomepromazina ) é um antipsicótico neuroléptico muito potente, de manuseio muito delicado, que facilmente pode levar à morte por uma série de motivos , colapso cardiovascular, obstrução respiratória com consequente insuficiência, arritmias, etc. Mesmo num hospital psiquiátrico seu uso é muito restrito e cuidadoso. Mas, segundo este interno, na casa de recuperação onde ele estava, tal medicação era ministrada inclusive por “obreiros”, ou seja, pessoal que nem da área da saúde é…
Isso acima reflete a situação não só de Goiás, mas do Brasil inteiro. Até 15 anos atrás, apenas 30% dos doentes psiquiátricos tinham associação com drogas. Hoje isso pulou para mais de 60%, em nossa casuística, de modo que praticamente todo doente mental, hoje, tem ligação com droga. Aí eles montam “fazendinhas, casas de recuperação, clínicas”, para drogados e isso passa a atender toda a população com doença psiquiátrica. Em síntese, são os novos hospitais psiquiátricos. Como um camelô na rua, as casas de recuperação “competem” com o “comércio que paga impostos, tem exigências, restrições, multas”. Eles não tem nenhum compromisso sanitário oficial, podem fazer o que querem, e ainda por cima com gastos ínfimos, quando comparados a um hospital, com toda sua canga enorme de impostos, exigências, normas, etc.
E o que é pior, tudo isso apoiado e financiado pelo Governo, o mesmo Governo que se gaba de ter “acabado com os leitos psiquiátricos” e tê-los colocados em centros psicológicos-sociais na comunidade. O que é pior é que o Governo montou essas estruturas caríssimas , em volume, pelo Brasil afora, que hoje gastam muito mais do que centenas de hospitais psiquiátricos. Disse que as montou , que custam caro de fato, mas que isso justifica o fim dos leitos psiquiátricos. Tais centros, segundo o Governo, substituem os hospitais, apesar de muitos deles já estarem virando um arremedo de hospital, e muito mais precário, pois, como as casas de recuperação, não tem médicos especialistas, plantonistas, etc. Governos gastam centenas de milhões de reais com os tais centros psicológico-sociais e ainda assim não conseguiram acabar com os leitos psiquiátricos. Pelo contrário, como mostro no gráfico, fizeram foi multiplicá-los de outras formas. Os custos, então, fizeram foi multiplicar-se, sem melhora real no atendimento técnico.
Não sou favorável a internação discriminada de pacientes psiquiátricos, assim como de qualquer outro paciente médico, sou favorável, isso sim, a seu tratamento técnico, digno, humano, seja onde for. Se precisar internar para fazer exames, para uma abordagem médica-especializada mais profunda, que se interne, assim como se dá em qualquer outra especialidade médica. Que fique o menor tempo e logo vá para um ambulatório médico-psiquiátrico especializado, coisa que também praticamente inexiste nas instâncias governamentais. Se for o hospital que tem os melhores ambulatórios, os melhores especialistas, os melhores meios de exames, as melhores equipes de enfermagem, os melhores recursos terapêuticos, então que se valorize o hospital, e não o demonize, como o faz o Governo Federal. É uma pura questão de hipocrisia, só isso.
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra)