Lições da vida
Diário da Manhã
Publicado em 18 de janeiro de 2018 às 23:52 | Atualizado há 7 anos
“Se buscásseis somente a volúpia que uma ação boa proporciona, permaneceríeis sempre no caminho do progresso espiritual.” 1
1 – Sou seu irmão!
O fato se deu num tempo em que a vida era mais descontraída: as muretas que envolviam as residências eram baixas e rosas se multiplicavam, a perfumar os jardins.
À época ainda se podia ir a passeio com as crianças às praças, para o sorvete, para as pipocas; e, anos antes, para ouvir a banda de música nos coretos. Até parece que já lá vai longo tempo! Mas não é tão antigo assim. Naqueles dias pais e professores eram tratados com respeito, admiração e carinho!
Portões de acesso à rua permaneciam abertos por longo tempo. E foi o que ele fez, pela pressa em guardar as compras que lhe abasteceriam a despensa da casa. Casa por sinal sempre acolhedora. Ao regressar de seu interior, deparou-se com um mendigo próximo à porta, e assustou-se com o estranho, dizendo-lhe, com agressividade na voz:
– O que o Sr. está querendo?
O velhinho – era um velhinho –, sujo, maltrapilho, sofrido, com ar de tristeza e fome, trazia saco imundo às costas. Este o olhou com piedade e respondeu-lhe:
– Por que o Senhor está me agredindo? Sou seu irmão!
E, ato contínuo, desceu das costas sua trouxa, dela retirando bela laranja, ofertando-a ao dono da casa, a dizer-lhe:
– Eis um presente, para que saiba que sou seu irmão… Pode pegar! Comprei com meu dinheiro!
Ou seja, era de sua propriedade. Não tinha origem escusa. Podia oferecê-la. Não era desonesto, como supusera o prezado amigo. E mais, era sumamente generoso, pois compartilhava o pouco que possuía até com um homem abastado, para exemplificar fraternidade!
A essa altura, nosso companheiro, muito emotivo e arrependido de gestos e palavras, trazia os olhos úmidos de emoção. E, ainda que sem intenção, agrediu-o novamente ao retrucar-lhe:
– Fica o senhor com ela, pois que precisa mais do que eu…
O senhor me perdoe. Em que posso servi-lo?
2 – A dor do remorso.
Chegara do sítio sábado à tarde e recolhia à casa o que de lá trouxera.
Ao retornar de seu interior, viu que homem sujo, maltrapilho e barbudo, entrara até o jardim e recolhia laranjas espalhadas pela grama, pois que o saco que as continha, ao cair, abrira-se. Fazia-o, silenciosamente, alheio ao mundo e à noção de posse.
Que era alguém perturbado mentalmente concluiu depois, na hora do remorso, do arrependido pela forma agressiva com que o tratara, ao vê-lo a catar os frutos.
Naquele instante não analisou nada. Sentiu apenas que o estranho era um intruso, um ladrão, a roubá-lo. E expulsou-o asperamente, sem levar em conta seu aspecto doentio:
– Saia daqui, seu ladrão! Deixa essas laranjas aí e suma; senão, chamo a polícia!
O outro abandonou-as na relva e humilde e lentamente buscou a rua, sem olhar para trás.
Aparentemente, o caso estava resolvido: cena prosaica, nos dias que vivemos, onde tantas criaturas perambulam pelas cidades.
Nosso amigo, passado o instante, pôs-se a refletir: fora enérgico demais; era um pobre homem. Além disso, quanta laranja estava a apodrecer na chácara! Não lhe custaria nada deixá-lo levar algumas e até lhe oferecer algo mais.
Assim pensando, reuniu várias frutas numa sacola e saiu a procurá-lo em muitas direções, em vão. Em instantes, desaparecera.
Só não se lhe apagara, a importuná-lo, a lembrança daquele personagem e de sua ação desagradável.
A partir daí, perdera o sossego, a paz de espírito. Não mais se concentrava em nada: nem na leitura do jornal, nem na tela da televisão. A todo instante, na mente, aquela imagem a lhe perturbar a consciência.
Sofreu, dias e dias, o arrependimento de não havê-lo tratado fraternalmente. Sua precipitação e egoísmo fora a causa de tudo. O remorso agora o atormentava.
Como sanar o problema?
Expôs o fato a um amigo e lhe pediu que sugerisse caminhos para livrar-se de vez daquela angústia, que o não abandonava, embora passados muitos dias.
Sugeriu-lhe que guardasse a lição para as próximas oportunidades em que outros sofredores lhe viessem ao encontro. O passado era irremediável. Talvez jamais reencontraria aquele pobre homem! Mas havia o futuro, no qual poderia agir de outra forma. Que, a partir daí, fosse generoso!
Deus nos concede, a todo momento, inúmeras oportunidades para o exercício da fraternidade! A vida, sempre sábia, é pródiga em lições.
Com todos podemos aprender: com velhos e crianças, com a natureza e até com mendigos.
O primeiro deles, por exemplo, a vida não lhe dera a fortuna, mas ensinara-lhe a ser fraterno até com alguém que o maltratara.
Como irmãos que somos, cabe-nos respeitar o próximo, de qualquer idade e ou condição social e em todas as circunstâncias.
Mendigos e laranjas, nas variadas circunstâncias, podem simbolizar fraternidade!
Inúmeros ‘infortúnios ocultos’ se exibem à nossa volta. Que tenhamos olhos de ver e corações sensíveis, para socorrê-los, amenizando-lhes as dores acerbas!
Quem aprende essa arte do verdadeiro amor, não só aproveita as ocasiões que se lhe apresenta para consolidar essa virtude, mas usufrui a alegria e a paz, como recompensa.
É o que nos diz o Evangelho Segundo o Espiritismo2:
“Oh! se pudésseis compreender tudo o que encerra de grande e de agradável encerra a generosidade das almas belas, esse sentimento que faz a criatura olhar as outras como olha a si mesma, despindo-se, jubilosa, para cobrir o seu irmão! (…)
Compreendei as obrigações que tendes para com os vossos irmãos! Ide, ide ao encontro do infortúnio; ide em socorro, sobretudo, das misérias ocultas, por serem as mais dolorosas! Ide, meus bem-amados, e recordai-vos destas palavras do Salvador: ‘Quando vestirdes a um destes pequeninos, lembrai-vos de que é a mim que o fazeis!’ (…)
´É na caridade que deveis buscar a paz do coração, o contentamento da alma, o remédio contra as aflições da vida.”
3 – Caridade moral: oferecer a outra face.
Lemos adesivo num carro que recomendava: ‘Seja cristão também no trânsito’.
Nele, a vida é pródiga de oportunidades.
Ilustrando, eis fato narrado por jovem amiga:
A mãe dela, agredida no trânsito por alguém rude e mal-educado, viu o agressor emparelhar o próprio carro ao seu, no próximo semáforo, e endereçar-lhe com a mão gesto obsceno.
Ela podia ser mãe dele e, não só por isso, merecia o respeito que devemos ao próximo, sobretudo quando se trata de uma senhora – ainda mesmo que houvesse cometido qualquer falha.
Serena e cristamente, ela abaixou o vidro do próprio carro e disse a ele:
– Que Deus o abençoe!
O semblante do outro transformou-se em puro constrangimento, eis que não esperava por ação extremamente generosa, vinda de uma desconhecida!
Alimentaria a indelicadeza do jovem motorista (?) se lhe houvesse dito: – Você não tem mãe para ensinar-lhe boas maneiras?
Não se nivelou à ignorância daquele a quem ainda falta aprender lições preciosas para quem vive em sociedade: a civilidade e a tolerância!
Demonstrou ela, com esse significativo gesto, que é possível vivenciar o que nos ensinou Jesus, ao nos recomendar oferecer a outra face!
Referências.
- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1ª. impr. Brasília: FEB, 2013. Cap. 13, it. 12, p. 181.
- ____, ____, Cap. 13 (Não saiba a vossa mão esquerda o que dá a vossa mão direita), it. 11, p. 179 e 180.
(Gebaldo José de Sousa, escritor)