Lula e o futuro
Diário da Manhã
Publicado em 22 de janeiro de 2018 às 23:23 | Atualizado há 7 anos
Depois de renunciar à presidência da República em agosto de 1964, Jânio Quadros dedicou um bom tempo a viagens internacionais. Demorou-se mais em Portugal, com dona Eloá, percorrendo o interior e desfrutando da hospedagem em algumas das muitas pousadas acolhedoras existentes naquele país. Ao regressar de navio, após vários meses de ausência, um batalhão de fotógrafos, radialistas e jornalistas, estava à sua espreita no porto de Santos. Tão logo botou os pés no solo brasileiro, um repórter disputou com os demais e conseguiu a atenção do ex-presidente para a pergunta adrede preparada:
– Presidente, como foi que o senhor conseguiu os recursos para o custeio dessa viagem? Jânio, cujo talento para safar-se de embaraços desse tipo nunca foi desmentido, levantou a mão direita com o indicador virado rumo ao céu e perguntou:
– Algum de vocês pode me oferecer um cigarro?
Naquela época o hábito de fumar não era alvo das restrições atuais. Até pelo contrário. O fato de gente famosa ser usada livremente, embalada por generosos cachês, na publicidade do cigarro, tornava chique e conferia status aos que cultivavam esse vício. Muitos dos presentes, apressados, arrancaram do bolso suas carteiras de cigarros, outros acenderam os isqueiros, aproximando-os de Jânio, que então respondeu:
– Foi assim: eu pedia e o privilégio de ofertar-me era disputado por muitos.
Cerca de um ano antes, Jânio, na condição de presidente eleito, fizera, como muitos em igual situação, um périplo europeu. Aí, claro, imperou o luxo. Da comitiva fazia parte um rico empresário, dono da JBS ou da Odebrecth de então. Na suite do hotel, onde o grupo discutia, naturalmente, o futuro da pátria amada e idolatrada, sempre que o garçom aparecia com mais bebidas e tira-gostos e pedia a assinatura do responsável, o presidente dizia ao amigo empresário: “Querem o teu autógrafo”. Claro, nada era preciso combinar ali. Favores futuros se achavam implícitos, claramente inseridos, uma decorrência natural. Para o distribuidor de autógrafos restou a decepção, apenas sete meses depois da posse, decorrente de mais um porre presidencial, já agora sob os auspícios do contribuinte brasileiro.
O fato é que a busca de espaço junto ao poder vem dos primórdios. Vi na tv, dia desses, o desabafo, durante audiência, do ex-governador do Rio Sérgio Cabral, ora recolhido, sob a mira de uns 20 processos, ao presídio de Bangu. O juiz perguntou a Cabral, durante depoimento, se a caríssima joia com que o empreiteiro Fernando Cavendish presenteou sua esposa, a então primeira-dama Adriana Anselmo, durante alegre reunião num chiquérrimo restaurante europeu, teria sido uma propina, em troca de determinada obra, e a resposta foi incisiva: “Foi presente de puxa-saco”, respondeu de pronto o ex-governador. Não podia haver desmentido, uma vez que a televisão exibiu a prova exaustivamente. Uma versão diferente da do delator premiado sim, era possível, e Cabral deu a sua. Quanto ao objetivo do presente, estava claro: a contratação de obra superfaturada mediante fraude na licitação. Eram dois marginais afinados.
Luiz Inácio Lula da Silva vai ser julgado no próximo dia 24 pelo Tribunal Regional Federal da 4a. Região, em Porto Alegre, em grau de recurso, uma vez que no mesmo processo já foi condenado pelo juiz Sergio Moro, de Curitiba, a mais de nove anos de reclusão. Não há nos autos a escritura ou um outro documento capaz de constituir prova irrefutável de que o apartamento triplex do Guarujá seja propriedade de Lula. Existe os depoimentos de delatores e a convicção de Moro quanto à culpabilidade do ex-presidente. Pela sua condição de juiz do feito, o palpite de Mora torna-se temerário. Mas, uma vez que o palpite está liberado, também vou palpitar: acho que o triplex, assim como o sítio de Atibaia, foram disponibiilizados à família do ex-presidente sem configurar uma propina, coisa combinada. Acho que foi empréstimo. Se Lula pretendesse possuir tais imóveis, poderia tê-los adquirido com o dinheiro de suas palestras, as mais caras do mundo segundo seus críticos.
Em tempos idos, teria dito Ulysses Guimarães: “O defeito de Lula é que ele gosta de viver de obséquios”.
Eleito e reeleito, ainda com prestígio para eleger e reeleger Dilma, para muitos um poste, Lula nem precisava pedir, como Jânio pediu um cigarro. Hàbeis e sagazes empresários, diante de tamanho prestígio disputam quem adivinhará primeiro qualquer desejo ou necessidade do destinatário do obséquio. Pela alta posição ocupada, Lula sequer precisaria jamais discutir obras com empreiteiros. Para estes, bastava que a equipe do governo tomasse conhecimento da intimidade de que desfrutavam com o presidente.
Condenado ou absolvido, depois do dia 24/01/2018 a discussão prosseguirá. Milhões de prós e contras continuarão a acusa-lo e a absolve-lo. Quando a poeira baixar, como o tempo é o senhor da razão, acredito que Lula vai ser lembrado como outros presidentes, também acusados duramente no seu tempo, mas hoje reconhecidos como pessoalmente honestos. A menos que surjam provas documentais, escrituras do sítio e do triplex. Aí seria diferente. Sem isso, a crença pró ou contra fica livre. Juscelino, cujo governo elevou o ego dos brasileiros, foi tão combatido que não conseguiu eleger um sucessor. Houve corrupção em seu governo? Respondo perguntando: é possível construir uma Brasília sem que haja corrupção? JK morreu pobre, dono de patrimônio compatível com suas atividades de médico, oficial da PM mineira e detentor de mandatos. Getúlio, cujas acusações de suposto “mar de Lama” o levaram ao suicídio, ficou na História como alguém que deixou como herança apenas o patrimônio que herdou. Todos, como Lula, foram alvos dos assédios, das ofertas, dos obsequiadores. Têm seus nomes limpos porque as acusações não eram acompanhadas de documentos. Creio que muitos brasileiros acreditam na inocência de Lula. Disso decorre seu primeiro lugar em todas as pesquisas de intenção de voto para a presidência da República.
Daí a grande responsabilidade do Judiciário nesse julgamento de Lula. Sem documentos irrefutáveis, o ex-presidente crescerá moralmente na medida em que o tempo passar.
(Valterli Guedes, advogado e jornalista)