Machado de Assis e a eleição argentina
Redação DM
Publicado em 1 de dezembro de 2015 às 23:04 | Atualizado há 10 anosEm “Aquarela”, belíssima composição de Toquinho e Vinícius de Moraes, pode o amante da boa música apreciar a reflexão dos compositores acerca do futuro: “E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar,/Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar./Sem pedir licença muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar”. Com certeza, a fala dos compositores se aplica tanto ao indivíduo quanto à coletividade. E faz pensar nos labirínticos caminhos que esse fragmento temporal, o futuro, percorre.
As produções cinematográficas hollywoodianas têm se fartado de brincar com as possibilidades oferecidas pelo tempo e sua maleabilidade imaginária. Da magia à ficção científica, os deslocamentos no tempo já impregnam a fantasia das últimas gerações que cresceram à sombra da cultura pop. Um dos exemplos mais emblemáticos foi a data de 21 de outubro de 2015. Isto porque, no filme “De Volta para O Futuro II”, as personagens centrais da história de viagem no tempo se deslocam do ano de 1985 para o então futurístico ano de 2015 a bordo de um híbrido de carro e máquina do tempo. Nesta data surreal que se pôde comemorar no último mês, o mundo real se confraternizou plenamente com o mundo da ficcionalidade.
Há viagens no tempo, contudo, que percorrem caminhos bem diferentes daqueles que são apresentados na ficcionalidade de Hollywood e permitem curiosas incursões pela linha do tempo. No dia 09 de julho de 1888, o jornal carioca “Gazeta de Notícias”, no Rio de Janeiro, publicava um texto histórico-literário do então futuro fundador da Academia Brasileira de Letras, Joaquim Maria Machado de Assis, que numa glosa parodística moderna bem poderia ser intitulado “Memórias póstumas de Machado de Assis e a eleição argentina”, numa referencialidade ao clássico “Memórias póstumas de Brás Cubas. Com o título de “O futuro dos argentinos”, o material jornalístico de Machado de Assis é um libelo contra o sectarismo político de qualquer natureza ou procedência ideológica, parecendo antever a polarização ideológica radical de grupos dos dias atuais no Brasil.
Rememora o importante escritor brasileiro o seu primeiro contato indireto em 1868, no Clube Fluminense, com Dr. Sarmiento, o homem que conduziria a Argentina a uma condição de prosperidade no momento em que seu texto é publicado. Sarmiento recebera o governo das mãos de um militar, General Mitre, a quem Machado de Assis atribui uma importância significativa para que Sarmiento obtivesse êxito naquele futuro do pretérito decantado pelo seu jornalismo literário antecipatório desse gênero moderno. A certa altura de sua crônica histórica, registra o criador de Brás Cubas: “Era evidente que esse povo, apesar da escola em que aprendera, tinha a aptidão da liberdade; era claro também, que os seus homens públicos, em meio das competências que os separavam, e porventura ainda os separam, sabiam unir-se para um fim comum e superior”.
Não deixa de ser uma importante lição do passado para o presente, muito embora seja, infelizmente, muito pouco seguida. A própria história argentina subsequente ao texto de Machado de Assis aponta nesta direção, quando aquela nação constrói e logo após destrói o futuro auspicioso vislumbrado pelo escritor brasileiro. O século 20 conheceu o apogeu e a derrocada argentina, quando a prosperidade do primeiro meio século veio abaixo na desastrada segunda metade da mesma centúria. A partir de então, instaurou-se uma das mais asquerosas formas de arregimentação das massas, o populismo, que a reboque da ganância e da incompetência administrativa de governantes inescrupulosos por um lado, e ineptos por outro, afunda nações prósperas ou, pelo menos, em vias de assim se tornarem.
O resultado da última eleição argentina que acaba de ocorrer faz recordar Machado de Assis. Apeado do poder pelo jogo democrático, o kirchnerismo praticante do populismo anacrônico empobreceu um povo que não merecia a sorte social e econômica dos últimos anos. Na remota hipótese de que havia boa intenção por parte dos governantes, vale o adágio popular de que o inferno está repleto dela. Mais do que de boas intenções, na condução dos destinos de um povo a competência administrativa, tanto interna quanto externamente, deve prevalecer, ser otimizada. Isto vale tanto para os argentinos, quanto para os venezuelanos e os brasileiros. Aliás, vale para o mundo moderno em sua complexidade geopolítica.
É imperioso, portanto, que jamais o jogo democrático seja ameaçado, pois ele representa a válvula de escape, em todos os sentidos, das tensões sociais, ideológicas, econômicas que agitam a vida de qualquer nação civilizada, que não vive de revoluções sangrentas e odiosas que expulsam seus cidadãos de bem para rincões distantes de sua terra natal, como atualmente se vê na crise dos emigrantes sírios em direção à Europa. Aos “hermanos”, termo aqui entendido sem nenhum sentido pejorativo, e aos brasileiros de 1888, Machado de Assis dirige estas palavras: “Oxalá caminhem sempre o Império e a República, de mãos dadas, prósperos e amigos”. São palavras atuais, para as atuais repúblicas.
Se o futuro chega sem pedir licença, fazendo rir ou chorar, como escreveram e cantaram Vinícius e Toquinho, oxalá ele reserve aos argentinos mais sorrisos do que lágrimas.
(Gismar Martins Teixeira, doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás, professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte – Seduce-GO)