Mãe sofre porque sua filha, doente mental, toxicômana, não pode ser internada contra a própria vontade
Diário da Manhã
Publicado em 8 de março de 2016 às 00:30 | Atualizado há 9 anosCorroborando o que eu disse sobre os equívocos na Lei que obstaculiza internações psiquiátricas involuntárias, nos artigos anteriores, das últimas sexta e terça (disponível em dmdigital.com.br), a mãe de uma dependente, senhora S.R., me diz por via digital: “Estou perdendo milha filha de 18 anos, universitária da U.F…… por essa maldita lei, fui atrás tentei internar, chamei a polícia, e eles me explicaram que ela podia me processar, perguntei ao policial: então só posso fazer algo quando ela estiver nas ruas jogada como um lixo humano? Ele respondeu: sim, infelizmente, essas são as leis de nosso Brasil, fui embora chorando”…
É por isso que eu digo: isso aí está errado, senhora S.R… Se ela está se prejudicando, se ela está prejudicando os que a amam e quem ela ama, está doente, precisa sim de uma intervenção, mesmo a contragosto. Quem se prejudica está biologicamente doente. Nenhum ser na natureza, biologicamente sadio, se auto-prejudica. É doença, e doente perdeu a capacidade de discernimento. Esta Lei está simplesmente errada.
O médico psiquiatra T.P., também diretor de hospital psiquiátrico para toxicomanias, diz: “Para o mundo aí que eu vou descer! A Lei psiquiátrica de 10.216/2001 fala justamente o Contrário do que você está dizendo, Marcelo. Ela prevê a internação Involuntária nessas situações. O problema não é a lei e sim a sua (falta de) aplicação por determinadas coordenações mentais do Governo comprometida com a tal “reforma psiquiátrica”. Essas sim “proíbem a internação”.
Eu respondo: muito bem argumentado, T.P., vamos discutir isso. A meu ver, o SUS aproveita-se da burocracia exigida para internar involuntáriamente (papéis pra lá, papeis pra cá, promotores, juízes, serviço social, conselhos tutelares, polícia, etc) para que a família do paciente desista. Esse efeito prático nós pudemos ver no depoimento da mãe S.R. aí acima. Esta obrigatoriedade de notificação é, ao meu ver, equivocada e burocrática. Se o médico psiquiatra atesta doença ele já está, legalmente, dizendo que o paciente não tem condições de decidir. É um documento legal que, evidentemente, se for do interesse de alguém, poderia ser questionado na justiça, evidentemente com o respaldo de no mínimo três outros médicos psiquiatras que refutem o laudo dado. Só quem tem uma formação médica muito especializada (psiquiatria exige seis anos de medicina e mais três anos de especialização) pode ver isso, não um juiz, delegado, promotor, psicólogo, ou seja, não outra pessoa que não tenha formação técnica específica para isto. Ou o médico é honesto ou não é, e, neste caso, não é uma outra pessoa, não médica, que poderá ver isso do ponto de vista científico. Se um médico atesta que a pessoa está doente e precisa de hospitalização, ele já está emitindo um “documento jurídico”, já está se comprometendo a provar que isto é verdade. Só outros médico, com igual capacidade técnica, e completamente isento, pode “julgar” se isso é correto ou não. Não é possível que, para todo diagnóstico e internação que o médico psiquiatra faça, ele tenha de submeter-se à uma enorme burocracia, pois praticamente 99% dos hospitalizados em psiquiatria não aceitam ou acham que não precisam de internação. O hospital psiquiátrico, neste caso, tem de transformar-se em uma verdadeira vara judicial.
No meu entender, há um tácito “pacto nefasto” entre várias instâncias governamentais para que o tratamento não seja feito. De um lado, como o próprio T.P. disse bem aí acima, há os antimanicomiais que querem acabar com os hospitais psiquiátricos, e aí impedem a internação (cada internação é um “tapa” na cara de sua afirmação de que o país não precisa de hospitais psiquiátricos). Os motivos são político-corporativistas, como já mostrei muito por aqui no Diário da Manhã. Por outro lado há os serviços próprios do governo, que “fogem de qualquer canseira”, aí colocam mil empecilhos para a internação. Também há, do lado de serviços conveniados do SUS, o problema da baixíssima remuneração, então também faz-se, nestes, o possível para evitar-se tais internações (toxicômanos dão “muito trabalho” hospitalar , bem mais do que outros tipos de doentes mentais).
Em todos estes casos há um denominador comum: interferência exagerada do Governo. Daí hospitais particulares – os poucos que sobraram – terem de cobrar caro por tais internações, dificultando o acesso da população, e propiciando as centenas de “clínicas psiquiátricas” clandestinas que pipocam pelo país afora (“casas de recuperação” que internam uns 80% de pacientes involuntários, sem terem a menor estrutura hospitalar para isso).
E o que é pior, o surgimento de milhares de clínicas psiquiátricas clandestinas pelo Brasil, as tais “casas de recuperação” que, muitas, mesmo sem terem médicos, enfermagem, farmacêutico, etc, ou seja, nenhuma estrutura hospitalar, fecham lá dentro as pessoas, aí sim, involuntariamente, como prisões domiciliares particulares. Mas é o jeito que o Brasil arrumou de resolver estes problemas criados pelas legislações e pelos Governos.
Nestas últimas estruturas de internação, não hospitalares, não medicalizadas, na situação atual do Brasil, um alcoolista, por exemplo, pode entrar abstinente, desenvolver lá dentro um delirium tremens, um Korsakoff, um Wernicke, um Machiafava-Bignani (complicações do alcoolismo não convenientemente tratado) e sair de lá demenciado (ou morto, conforme vários casos noticiados, ou não-noticiados ).
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra)