Mandraquice existe? Ora, se…
Redação DM
Publicado em 6 de setembro de 2018 às 23:24 | Atualizado há 7 anos
Lá pelas bandas da fazenda Engenho, no sertão de Conceição do Tocantins, onde passava alguns dias em todo mês de julho descansando, num lugar dito Verdadeiro pra uns e Furnas pra outros, morava um senhor de Ezique, gente de lá mesmo, nascido e criado ali e com cujos familiares mantenho a mais perfeita avença. E o tal Ezique – que não conheço, mas não refugo um encontro a qualquer hora – dizem que sabe cruzar os pauzinhos numa inhaca tocada pelo feitiço.
Desde muitos anos, mercê de naquela época morar em Belo Horizonte, eu não tinha notícia de gente mandraqueira, desconsertadeira da vida alheia. Sempre existiu feitiço, sempre existiu inhaqueiro pelo sertão, mas no mais das vezes gente anônima, pois o bote fatal é sempre dado no escondido.
Os desmanchadores de feitiço – estes, sim! – sempre foram declarados, como um famosíssimo Joaquim Paraguaio, que assistia perto da Cabeceira Verde, a três léguas do Engenho, onde era o império da velha Maria Segurada, que benzeu e curou meio mundo até morrer há coisa de quase trinta e tantos anos, se muito. Paraguaio morreu há mais de cinquenta anos, após desenlinhar a vida de um bando de gente e deixar um rastro de lenda em torno de seu respeitadíssimo nome.
Morto Joaquim Paraguaio, meio-índio-meio-gente, restou o velho Severiano, morador na beira do Itaboca, o qual, apesar da idade, com seus quase oitentanos bebia sua pinga farta e operava seus prodígios. Muitos anos atrás, no afinco de conhecer o velho, encasquetei-me: botei o carro na estrada, contornei tocos, vadeei grotas e encafinfei sertão adentro mais de sessenta quilômetros, fui bater lá, e acabei foi passando a noite no casebre miserável do lengendárío preto, que me contou passagens de sua vida e me prometeu “fechar o corpo” numa próxima ida. Mas o velho Severiano, que se dizia o “escravo do Divino”, é assunto para daqui a uns dias, que uma hora destas tratarei dele.
Contava-me meu falecido ex-sogro que existia por lá um outro curador por nome Albertino, que estava dando trabalho pros botadores de feitiço, pois o homem parece que de fato tinha força e magnetismo.
Surgido há muito tempo, passei a conhecê-lo (tanto que fui seu advogado numa pendenga na Justiça por conta de curandeirismo), Albertino até que não tinha conquistado a confiança do povo, que, embora crédulo ao extremo, sempre vê essas novidades com um pé na frente e outro atrás. A resolução de um caso surgido – e tido por inexplicável – é que deixou o povo besta, de queixo caído e beiços afastados com as mandingas do bem que Albertino istuciava.
Mas assuntem só.
Morava na Barra Nova meu finado amigo Rafael Cardoso, perdido de uma vista, sempre com um par de loneta pra tapar o sol, conhecido de Deus e o mundo, pois nasceu, cresceu, viveu lá, com sua familiazinha de dezesseis filhos (vivos, forante os que Deus carregou antes do prazo). Dentre esses filhos, tinha Santo Cardoso, casado com Tina, mulata até bem-aparecida, que assistia ali nas rodeanças.
Tão bem apessoada, pro gosto do sertanejo, Tina era de ombrear a enxada e fazer limpa de roça de mantimento no rabo da ferramenta, e logo despertou a cobiça do tal de Ezique, um camarada comum. E o chamego de Ezique foi crescendo pra riba da mulher de Santo, que, inocente, não via nas intenções gulosas daquele casanova sertanejo nada de estranho.
Mas como Santo era muito caseiro, pacato e dificilmente saía de casa, só pra roça, Ezique não achava brecha pra ir ali pertinho, no mesmo Verdadeiro, para onde se mudara Santo, puxado pelo sogro, o velho Eliziário, também sogro de Ezique.
Santo, inocente; Ezique, de olho comprido pra riba de Tina, mulher de Santo, concunhado dele-Ezique.
Passado algum tempo, Santo pispiou a sentir-se perrengue, com umas macacoas e uns achaques desfundamentados, e não houve gente que desse volta na misteriosa doença. Na verdade, nem ele mesmo lhe sabia a origem.
Com a imobilidade de Santo – que ficou sem jogo nas pernas, o lado do corpo esquecido, grudado na cama -, o esperto Ezique viu-se com a corda toda para cortejar a mulher do concunhado, agora inválido.
Logo, o sertão inteiro encheu-se da notícia da doença de Santo, que sempre fora homem disposto e trabalhador, admirando como quebrara de carnes a ponto de fazer suas precisões atrás das bananeiras levado por mãos dos outros. E talvez continuasse inocente do que ocorria entre sua mulher e o conquistador sertanejo, o qual – dizendo o povo – já estava com ela alceada; em outras palavras: tinha-lhe tomado a mulher.
Como quem está perdido não carece escolher estrada, da legião de palpiteiros veio um conselho:
– Lev’ele lá no Albertino!
Ora, quem está perdido qualquer fiapo de esperança servia numa agonia daquelas, e os próprios familiares de Santo carregaram-no para o homem ver.
Malmente Albertino, assessorado pelos espíritos que pastoreava, benzeu Santo Cardoso uma vez, que tudo sumiu, e Santo voltou com as próprias pernas, após ouvir o sentencioso Albertino dizer:
– Fizeram feitiço pra matar você e tomar sua mulher!
Nem carecia esmiuçar, pois na boca do povo já corria o chamego de Ezique pra riba de Tina.
Ao voltar, Santo até quis matar a mulher, que fugiu pra casa do pai, com quem passou a viver dali em vante, não sei se até hoje, pois mulher é uma nação de gente que costuma voltar com a mesma constância com que sai.
Por sua parte, Santo não quis – nem era besta de querer – confusão com Ezique, pois sabe-se lá se seu concunhado não tinha outro feitiço engatilhado como defesa?
(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])