Maria Valeime: a têmpera, a coragem e o determinismo da mulher nortense/tocantinense
Diário da Manhã
Publicado em 6 de março de 2018 às 21:53 | Atualizado há 4 meses
O seu lindo nome já é uma invocação dirigida aos céus. Uma comunicação humana e divina ao mesmo tempo; misto de corpo e alma, na caminhada do mundo. No fadário humano, estamos sempre a necessitar da ajuda da infinita misericórdia e ao certo, seu nome veio carregado de intenso significado, como marca das lutas que passaria pelo mundo na sua digna caminhada de quase 80 anos de existência.
Seu nome nasceu de inspiração numa linda oração de sua bisavó paterna, que invocava a ajuda mariana e intercessão da Santíssima Virgem aos devotos; inserida no breviário romano, no século XVI. Do verbo inicial da oração original romana, verbo de invocação, passou a um segundo nome; numa apócope, que é um metaplasmo por queda ou supressão de uma palavra. O verbo cedeu e perdeu o hífen. O belo e singular nome nasceu, pois de uma forte oração secular, assim definida:
Maria, valei-me
Aos vossos devotos,
Vinde, socorrei-nos!
Vosso amor se empenha,
Ó Virgem da Penha,
Penha donde emana
A Fonte vital!
Salve, Mãe de Deus!
Rainha Suprema
Sobre os Anjos seus!
Sois Mãe de concórdia,
De misericórdia;
Vida e doçura,
Esperança sois!
Ó Mãe do Senhor,
Excelsa Maria!
Ó Trono de amor,
Salve! Ouvi os brados
Que nós, degredados,
Da triste Eva filhos
Vimos suspirar!
Gemendo de dor,
Chorando de mágoa,
Pedindo a Deus favor:
Neste vale triste,
Onde a pena existe,
De lágrimas cheias,
De miséria e ais.
Ouvi, eia pois,
Nossa Advogada!
Mostrai quanto sois
Olhos piedosos,
Misericordiosos!
A nós, degradados,
Terna Mãe, volvei!
Depois de acabar
O cruel desterro,
Dignai-vos mostrar
Jesus infinito,
Que é Fruto bendito
Desse feliz ventre,
Ó Mãe de Jesus!
Ó Clemente, ouvi! Ó Pia, valei-nos! Ó Doce, acudi! Ó Virgem Maria, Que a Deus, que nos cria Criastes nos peitos, Por todos rogai! Para que por vós As promessas suas Mereçamos nós. Assim suplicamos, Porque nos vejamos Nessa Eterna Glória Para sempre. Amém. Humildes oferecemos, A vós Virgem Senhora, E ao vosso Bento Filho! Do céu e da terra, Rainha da glória, Louvores vos damos, Aceitai Senhora!
Maria Valeime traz, no sangue, a força telúrica e ancestral do antigo povo nortense, das lonjuras do velho Goiás, antes da saga do Tocantins. Vem da zona norte do antigo Norte goiano, terra de gente lutadora e valorosa, a lembrar Ana Braga Machado Gontijo, Amália Hermano, Maximiano da Mata Teixeira, José Décio Filho, João d’Abreu, Felipe Xavier da Barros, Ana de Britto Miranda, Aldenora Alves Correia e tantos outros baluartes de outrora.
Forjada nessa luta da saga nortense, nasceu Maria Valeime na velha e secular Filadélfia, sesquicentenária cidade, surgida por volta de 1857 a partir da fazenda de lavoura e criação de gado de Filadélfio Antonio de Noronha; daí o nome a perpetuar sua epopeia naqueles ínvios e esquecidos sertões do norte goiano. Do velho Porto dos Paulas, de esquecida memória, há cem anos, já havia vasto comércio com o Estado do Maranhão, principalmente Carolina, ali por perto.
Naqueles sertões brutos, em 1919, veio tomar conta do Posto de Arrecadação, com sede na antiga Vila Boa de Goyaz, distante no sul, o Fiscal Otaviano Pereira de Britto, subordinado à Boa Vista do Tocantins, depois Tocantinópolis; este passou a residir no local e conclamou outras famílias para ali residirem. Este foi o início de Filadélfia. Seus pioneiros políticos foram Francisco Furtado, Cândido Valadares Noleto, Dotorveu Maranhão Machado, Miguel Souza Santos e Maria Cleofas Souza Maranhão.
Nesse cadinho histórico viria ao mundo, predestinada por Deus a viver lutas e labutas, a admirável Maria Valeime Montel Correia, filha de João da Silva Montel, maranhense e Maria de Nazaré Souza Montel. Era o dia sete de janeiro de 1943, há 75 anos passados.
Como era comum, teve muitos irmãos como José e Maria, natimortos, que, pela tradição, ganhavam os nomes de santos; nesse caso, os pais de Jesus; depois Manoel Rodrigues Montel, que faleceu de acidente automobilístico; Pedro Montel da Silva, que faleceu aos seis meses, de doenças da região; Maria Virgem Montel, que faleceu aos quinze anos, vítima de febre amarela; Ana da Silva Montel; Francisco da Silva Montel; Ermínia da Silva Montel, que faleceu aos 44 anos, vítima de câncer; Rosália da Silva Montel; Antonio da Silva Montel, que faleceu aos 33 anos de idade, em decorrência de uma cotovelada no baço, num jogo de bola; Maria Luiza da Silva Montel, adotiva e legitimada, entregue pelo próprio pai; e a última, Lilian da Silva Montel; cujo nome traz a curiosidade de ser precedido por diversos, antes do definitivo. O pai queria que se chamasse Jerusa. A parteira queria colocar Domingas do Espírito Santo, por ter nascido no domingo da Festa do Divino. Maria Valeime, usando de sua autoridade de madrinha, passou a chamá-la de Ivete. Mas, o nome definitivo só veio depois de dois anos, com o de Lilian. Uma verdadeira saga, o nome em definitivo.
Quando Maria Valeime tinha cinco anos, em 08 de outubro de 1948, Filadélfia foi emancipada e se tornou município, efetivando-se em 01 de janeiro de 1949, quando foi empossado seu primeiro prefeito Dotorveu Maranhão Machado.
Seguiram-se outros como Raimundo Franco de Souza, Adeuvaldo de Oliveira Morais, seus primeiros dirigentes naqueles velhos tempos. Mais tarde, em 1954 foi criada a comarca de Filadélfia.
Maria Valeime nasceu no distrito de Gameleirinha, quando se formavam então outras pequenas localidades perdidas naqueles sertões, que pertenciam ao novo município, como a antiga Lontra, hoje Araguaina e Olho grande, depois Palmeirante; ainda Araguanã, Muricizal, Crato e Xixebal, assim como Iviti. Esses pequenos povoados eram compostos por uma população pequena, pobre, extrativista, que se misturava com os habitantes do Estado do Pará e, também, do Maranhão.
Belos eram os rios Tocantins e Araguaia, que banhavam a região, assim como o Lontra, dos tempos da juventude e primeiros anos de vida da admirável Maria Valeime. Seu pai era carpinteiro afamado na região por sua competência e honestidade. Por anos, trabalhou para um senhor que era vidente e, ao ir embora, deixou para a família de seu empregado um piquá com pedras preciosas e diamantes, ressaltando que sua esposa estava a esperar uma menina (certa a premunição) e que esse valioso presente seria um patuá para trazer boa sorte à criança quando nascesse.
Porém, o piquá foi dado de presente a sua tia paterna, Constância, que auxiliou sua mãe durante o resguardo. Muitos anos depois, na juventude, em queixas infantis, Maria Valeime reclamava o patuá como simbologia de sorte e fortuna, que havia ido embora para sempre.
No ano de 1947, a numerosa família do carpinteiro João Montel saiu do povoado de Gameleirinhas e passou ao município de Filadélfia em busca de dias melhores. Ali, em meio às lutas pela vida, ficaram até 1954, quando passaram para ponta da serra, no município de Itaporã; ali permanecendo até 1957, quando se aventuraram pela sobrevivência em Conceição do Araguaia, no Estado do Pará.
Nessa bela e distante cidade do então esquecido e inóspito Estado do Pará, a família passou pelo sofrimento da perda da filha Maria Virgem. Desgostosos, passaram a residir na velha Porto Franco, hoje Couto Magalhães, à época, norte de Goiás. Maria Valeime, como filha dedicada e uma das mais velhas, passou a se dedicar desde cedo ao trabalho, forjada na luta pela vida, sem esmorecimentos.
Em 1960, João Montel foi residir em Porto Nacional, seguido da esposa. Houve uma cisão familiar e Maria Valeime, passou a residir em Conceição do Araguaia, na casa do tio Severino, no intuito de aprender a costurar e bordar na máquina; um velho sonho há tanto acalentado. Sua tia Maria Lima era exímia costureira da região e a família era muito divertida com suas festas e bailes na roça, onde todos se divertiam sadiamente naquelas épocas distantes do velho Norte goiano.
Na velha cidade, o futebol também tinha seu valor social. O tio de Maria Valeime participava do time Águia Negra, da cidade, que fazia muito sucesso naquele tempo. Assim, numa comemoração da vitória do time, num baile animado, José Edson, apelidado “Zé Dilson” passou a cortejar Maria Valeime, com ela dançando de par fixo toda a noite e, tal fato, já foi mote e sentido para um pedido de namoro e futuro casamento.
O noivado durou dois anos e de “queima”, ou seja, rapidamente, o este foi decidido e consumado. Dessa união nasceram cinco filhos. O casamento entre Maria Valeime e José Edson aconteceu em 2 de outubro de 1965, em Conceição do Araguaia. Tiveram os filhos: Marcos, Maísa, Máiro, Mailda e Milla. Nas lides de pedreiro, mas com conhecimento na sua região, José Edson vivenciou a atividade de vereador em sua cidade, por dois anos, a partir de 1972, em plena ditadura militar.
Teria início, nessa época, novas lutas e labutas que colocariam em prova a carismática atuação de Maria Valeime no mundo social em que estava inserida e sua forte atuação como líder comunitária; mulher de eloquência e atuação, firme na sustentação de seus sonhos e ideais; além das lutas contra a injustiça muito comum naquelas terras distantes, sem valor, mas cobiçadas pelos grandes latifundiários; tema recorrente nas peripécias de Trombas, como se acentuou no romance de José Godoy Garcia, de forma magistral.
A sua primeira luta ocorreu na antiga Fazenda Juarina, hoje cidade do Tocantins, quando aquela região do Médio Araguaia passou a sofrer situações de grilagem, com a instalação de grandes latifúndios. Os conflitos não tardaram. Maria Valeime se pôs firme na luta pela conquista da terra, sem esmorecimentos, em busca de uma reforma agrária justa na região. Ali, famílias moravam há mais de 50 anos e eram agredidas e escorraçadas.
Maria Valeime, pequena e humilde, mas imbuída de sua coragem e destemor, passou a atuar de forma clara e incisiva na luta pela reforma agrária ali naquele fim de mundo. Passou a integrar a comissão de frente nessa luta, nas representações de Goiás, em conjunto com as de Mato Grosso, Goiás e Pará. Dos 11 representantes, outros dez eram homens, somente ela de mulher.
Houve firme apoio da CPT (Comissão Pastoral da Terra) do Pará, em Conceição do Araguaia. Havia uma sede em Brasília, que também dava o apoio, mas a luta ficou muito intensificada, com greve de fome e posterior invasão do Incra, como forma de pressão para as autoridades desapropriarem a fazenda Juarina.
A greve de fome durou setenta e duas horas e, com esse recurso extremo, a desapropriação foi conquistada. Houve forte intervenção da imprensa nacional; o que repercutiu no Palácio do Planalto; o que levou o então Presidente José Sarney a assinar a desapropriação e consequente emissão de posse.
A luta pela terra na Juarina representou, na existência iluminada de Maria Valeime, uma escola; aquela que não teve oportunidade de frequentar, ainda lhe trouxe o sustento, como mulher da terra, carregando sementes perenais.
Estudou em Conceição do Araguaia, no Colégio Santa Rosa até a terceira série primária, não podendo continuar seus estudos por necessitar auxiliar sua família pobre, no sustento do cotidiano, com seus muitos irmãos.
A luta começou logo que se casou. Dom Alano Maria Pena, hoje arcebispo aposentado, pela Cúria de Nova Friburgo, por perceber seus méritos de carisma e eloquência no trato com o público, convidou-a para participar do clube de casais. O mesmo batizou seu terceiro filho. Assim, por meio do clube, muitos casais foram aderindo ao movimento ligado à Igreja, atraídos pela fala fácil e incisiva de Maria Valeime.
As freiras dominicanas responsáveis pelo Ambulatório São Lucas (Hospital da Cidade), criaram um grupo de mulheres voluntárias, responsáveis por fazer enxovais para famílias carentes e mulheres da vida, trabalho em que Maria Valeime deu provas de seu talento na costura, arte que sempre amou com desvelo.
Em meados de 1970 passou a integrar o Apostolado da Oração. Como irmã do Apostolado ficou como sócia. Depois, o Vigário Sebastião Dias de Brito, convidou-a para ser presidente desse mesmo Apostolado. O assunto principal era oração, somada a um trabalho social (Orar: ato de rezar + Ação: ato de ajudar).
Com seu destemor e energia vibrantes, Maria Valeime propôs a criação de um grupo para rezar nas casas das famílias, ao ampliar o trabalho comunitário; isto até o ano de 1978. O trabalho social se estendeu até a periferia, na ajuda às pessoas com problemas de saúde. O grupo contava com a ajuda de um médico.
A atuação de Maria Valeime aconteceu até o ano de 1983. A mudança do Apostolado para outra cidade impossibilitou a continuidade do trabalho. Destemida, passou, então, a desenvolver trabalho social junto aos detentos na cadeia da cidade, que se dividia em evangelização e assistência social. Teve grande alcance humano e caritativo esse empenho da aguerrida nortense/tocantinense.
Então, em 1984, teve início o trabalho no assentamento na Juarina. Na época, não existia colonização. As terras eram da união. O projeto nacional era habilitar a Amazônia. Os militares começaram a titular as terras sem fazer vistorias, ou seja, sem saber se as áreas eram habitadas.
Em 1993, Maria Valeime vendeu a emissão de posse, e, com o dinheiro investiu na sua casa em Conceição do Araguaia. Nesse tempo, em 1994 perdeu mais uma irmã (Hermínia), vítima de câncer; fato doloroso para todos os familiares.
Em 1995 Maria Valeime vendeu sua casa em Conceição do Araguaia, com duas filhas já instaladas na cidade e fazendo faculdade, mudou-se para Goiânia, em busca de melhores recursos; entre grandes e dolorosos desafios, tais como, o lote irregular que comprou; o que gerou outra luta sem esmorecimentos, com base na sua coragem e fé em Deus.
Mas, a luta não cessou por aí. Como uma escola de iniciação de lutas, a Juarina foi apenas o princípio. Adquiriu um lote em um loteamento, então irregular, e iniciou outra luta pela conquista de terra urbana. Uma outra grande luta!
Passou a batalhar pela regularização da área urbana que comprara nos arrabaldes da capital de Goiás. Enveredou novamente por metas e desafios, audiências no Fórum, onde sua voz firme e decidida passou a ser ouvida novamente, como aguerrida e desafiadora pequena/grande mulher de lutas e labutas, forjada no sol nortense/tocantinense, atenta a olhar o horizonte com a coragem das mulheres fortes das sagradas escrituras.
Passou pelo sofrimento da perda de seu esposo em 2016, vítima de um acidente de trânsito e sua longa e pertinaz agonia. Combalida, mas firme, prossegue adiante com sua imbatível coragem, sua fala eloquente, seus gestos fortes e seguros como se, em cada instante seu, insere eternidades.
É a mulher telúrica, a mulher/chão, a mulher/terra. Na força ancestral do velho norte goiano, hoje o Tocantins, traz, em si, a seiva da vida e da coragem, a luta e labuta para prosseguir avançando no tempo com a argamassa de sua força, resistência e persistência. Tem o seu lugar no mundo, com certeza e no coração de todos os que, como eu, admiram-na do mais profundo do coração.
Maria Valeime crê que há sempre algo novo nascendo a cada dia. Sabe que rompe o sol no horizonte e novas perspectivas se abrem na contraditória caminhada humana.
Sabe, essa rapsoda, que deixa versos vividos diários ao criador na sua caminhada, essa mulher forte como a terra; mulher/passarinho que, antes de tudo, do verbo e da dimensão do mesmo no entrechoque das palavras, nos significados das línguas, os parâmetros entre gêneros masculino e feminino são posteriores ao surgimento do ser humano. Há uma dimensão muito mais profunda no sentido espiritual do que apenas o biológico. Não só os caracteres que definem o que é um macho ou uma fêmea; existe a essência de algo absolutamente maior que nos une sem que disso nos percebamos.
Maria Valeime é o princípio e o fim das coisas. Mulher perenal, na construção de si mesma; evocativo exemplo de persistência/resistência.
Maria Valeime, ser humano mais que especial. Atemporal. Dinâmica. Holística. É ela a mãe de toda a história. “És láctea estrela, és mãe da realeza/és tudo enfim/que tem o belo em todo o resplendor/em santa natureza”. Como cantou Pixinguinha.
Maria Valeime, a mulher; que deve preparar para abrir caminhos entre as pedras, pois ela é indispensável à harmonia do universo. É sempre ela a eterna Eva, o enigma perscrutado e jamais decifrado; geografia de sua alma complexa. Alma banhada de sol e de abismos indevassáveis. Zonas abissais da alma feminina, que mantém-se no mistérios desde o princípio das eras.
Essa mulher que, mesmo calada, ensina. Maria Valeime, na ternura do seu lar abençoado e simples, sua cozinha, suas rezas, suas plantas, suas ervas e temperos, sua verve sempre viva e eloquente a falar de lutas, representa, nesse espaço, todas as mulheres que não se calaram; que se ergueram nos pés frágeis para ver o que havia por detrás do alambrado do destino. Ativa, confiante, destemida, forte, continua a ser semente e messe, no grande campo a semear, a que chamamos vida, até a eternidade. Plurissignificada, poderia enunciar: “Valei-nos!”
Maria Valeime, pelo seu passado tão forte, e, tão doce o seu presente, eu te admiro e te amo na mais doce das ternuras!
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Literatura pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG. Pós-doutorando em Geografia pela USP, professor, poeta – bentofleury@hotmail.com)