Matando a curiosidade de Luiz Augusto Pampinha, que há décadas me especulava sobre o meu interior
Diário da Manhã
Publicado em 4 de março de 2016 às 00:15 | Atualizado há 9 anosAnos atrás, quando escrevia para o Diário da Manhã, que ainda funcionava na 24 de Outubro, na quadra de oitenta e poucos, entrei na redação para abraçar a turma e deixar assunto para uma coluna que largava lá toda semana; fiquei de bate-papo com um e com outro. Um queria saber se a pinga daqui é boa; outro contava que o Jorge Braga tinha tornado a cair de moto (estava caindo mais do que nossa moeda) e ficaram especulando coisas daqui, pois parece que o povo da cidade grande já vive é saturado de tanto horário, condução, crediário, SPC, e outros ranços de hoje.
Sentado à máquina, datilografando uma lauda, alguém me chamou pelo nome (seguramente por ter ouvido a conversa no burburinho) e eu, procurando conhecer a todos, quando levantei as vistas pensei que era o Ziraldo aquele camarada tiposo atrás da máquina. Depois, reparando bem, vi que não era o homem de Carangola (ou será Caratinga), pai de “Jeremias, o Bom”. O certo é que a cara não me era estranha, mas logo ele me tirou da dúvida: era o Luiz Augusto, que todos os dias estava (e ainda hoje está nas páginas do jornal, com suas notas sempre interessantes, não deixando de elogiar o Palmeiras). A pena mágica do desenhista daquela época retratou-o quase que fielmente, faltando apenas o aspecto jovial e a coloração dos cabelos do original, que justo naquela hora me falava:
– Pois é, rapaz, leio todas as suas colunas.
– Quem manda você estar por cima… – retruquei, apontando o espaço de sua coluna, logo acima da “Página Aberta”, que era de minha lavra, entremeada com Carmo Bernardes, João Bênio e Oscar Dias. Mas o Luiz Augusto, com aquele ar bonachão, me cobrou:
– Como é, rapaz, você não diz onde mora, pois nas suas crônicas só fala aqui na “minha cidade”, “no interior” e, quando muito, “lá no Duro”, que não sei ao certo que cidade é a sua.
Pois é, satisfazendo a curiosidade de um bando de gente que vinha telefonando pra redação atrás de endereço meu, aproveitei para informar, ao mesmo tempo em que fiz um retrato de lá de São José do Duro, servindo também para matar a curiosidade do Luiz Augusto.
São José do Duro foi São José do Duro até 1938, quando a vila (também conhecida por Vila do Duro) foi elevada à categoria de cidade com o nome de Dianópolis. Isto, porque, na época, havia várias Dianas (que, na verdade eram Custodianas): Diana Póvoa, Diana Nepomuceno, Diana Leal, Diana Costa, sem se falar em possíveis outras.
Mas isto foi só para servir de embocadura. Pela catadura com que me apresentava lá, podiam saber que nosso interior ainda estava por desbravar em muitos pontos: faltava luz (ter tinha, mas todo dia às 6 da tarde ia embora por quase uma hora, para “descansar o equipamento”); não tinha água (aliás, ter, até que tinha, mas a Saneago já andava meio manjada com esse negócio de cobrar do consumidor, que nem sempre podia ter o líquido); comunicação com o “exterior”, tínhamos a Votec duas vezes por semana, mas a linha aérea era deficitária e acabou foi acabando mesmo; ônibus, tínhamos diariamente para Brasília e Goiânia, mas o fato de eu só ir lá de carro próprio justificava: de lá pra Brasília há uma linha com nome errado – o nome oficial era a “Viação Paraíso”, mas, pela experiência da última viagem que fiz, devia ser era “Purgatório” (para rodar 700 Km gastávamos nada menos que 30 horas). Para inteirar as medidas, costumava dizer que na empresa a gente, quando embarcava, era passageiro, mas quando desembarcava era sobrevivente. Mas deix’isso pra lá, e vamos adiante, pois com a divisão do Estado, e a consequente criação do Tocantins, acabou-se o atraso, pois Brasília caiu na desimportância, e o polo de atração passou a ser Palmas.
A cidade já teve seus dias de glória, quando só havia gente de lá mesmo, mas com a chegança de gente de fora, está ficando cosmopolita até demais. Tem uma história muito triste, que Bernardo Élis retratou no seu romance “O Tronco”, onde a polícia de Totó Caiado matou, a sangue frio, vários parentes meus, entre eles meu avô e um tio menor. E sobre o assunto, o mano Osvaldo Póvoa escreveu “Quinta-Feira Sangrenta”, que, sem bancar o cabotino, recomendo como excelente e quem quer conhecer nossa história deve ler, ainda mais que saiu recentemente uma edição ampliada que o Governo mandou fazer.
A política andou bagunçando um pouco, com as brigas (por baixo das cortinas) de parentes e os governos estaduais de Goiás, que mais atrapalhavam que ajudavam. No mais tínhamos nossos tipos característicos (Né Velho, Chico Farinha-Seca, Cursino, Justina e Anjo); a pinga boa de Chico Araújo, as fazedeiras de bolo, que eram Ditosa e Mixula de Bolacha; a carne de sol melhor do Brasil; os conhecidos dos tempos de infância para o bate-papo de recordações, que levavam a gente a ter assunto a rodo para explorar a minha coluna semanal; enfim, a cidadezinha era a imagem de cidade provinciana, onde todo mundo conhecia todo mundo, onde os mexericos andavam à solta, transformando comédia em tragédia e vice-versa. Em suma, dali do meu recanto, escutando a natureza e criando os meninos soltos, de pés no chão, sem temor de trânsito, é que semanalmente produzia meu artigozinho, que muitos leitores não sabiam de onde saía. Ainda hoje, tenho leitores cativos, como Osvaldo Silva, que eu trato de “Zé Pereira”, que me liga lá de São Paulo toda vez que lê minas caraminholas.
Vez por outra, metia-me no meu carrinho de segunda mão e ia até a civilização, para assuntar as coisas, que não andavam lá muito bem das pernas, com este custo de vida que sempre está pela hora da morte, e aproveitava para comprar algo de novo nas livrarias, principalmente para estar sempre em dia na advocacia que exercia e que era meu ganha-pão, pois de empregado do Estado já tinha enchido as medidas e pedi as contas, e literatura é como esse biscoito que tratam de papa-ovo: parece que dá pra matar a fome, mas é só engana o estômago.
Pois é. O espaço acabou, mas ainda tem muita coisa. Mais logo vou concluir o retrato da velha Dianópolis, pra que meus pacientes leitores, que me lêem toda semana, não façam mau semblante dela.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])