Opinião

Mato Grosso: palco da primeira crítica teatral no Brasil

Redação DM

Publicado em 15 de dezembro de 2015 às 22:47 | Atualizado há 9 anos

Conforme ousamos demonstrar no livro “Teatro Experimental do Negro em Goiás” (Tengo), a circular nos primeiros meses do ano de 2016, a arte teatral, do ponto de vista dos “donos do poder” e da história oficial, não se preocupou com a defesa do segmento social negro, escravo no Centro-Oeste por mais de 200 anos, começando no início do século XVIII, alcançando 1888, com a suposta Abolição, que todos sabemos ter sido muito mais retórica do que real, o transformado em escória da sociedade, se não bastasse a surpreendente emergência de outras nocivas ou piores modalidades de escravidões, ainda presentes, como a “de fato”, a “branca”, a “indireta”, dentre outras, características desse sistema político-econômico neoliberal de nossos dias, existentes em Goiás e Mato Grosso, onde já estão sendo fustigadas pela mídia e combatidas pelas leis brasileiras e de outros países.

Não esqueçam os possíveis leitores que no século XVIII e início do XIX, como de certo modo já realcei no livro citado, os atores eram pessoas das classes mais baixas, em sua maioria mulata, entrando outros pobres de outras cores, certamente justificando o porquê a atividade teatral chegou a ser considerada pejorativa, às vezes desprezível, infame e até criminosa. Merecendo ser enfatizado que o mulato, pouco importando seus vários similares da sinonímia linguística, conseguiu coexistir na convergência e a repulsa entre a Casa Grande e a Senzala, assim se dando a ele – não esqueça seu grande sofrimento e complexidades histórica – funções como a de feitor e de capitão-do-mato e, só mais tarde, a de ator teatral, como ocorreu em Goiás e surpreendentemente em Mato Grosso, onde a encenação teatral teve destaque em Cuiabá, por certo ao ar livre ou em tablados, às vezes perante autoridades, principalmente no finalzinho do século XVIII, mais precisamente na última semana de agosto de 1790, na presença do ouvidor D. Diogo de Toledo Lara Ordonhes, destinado àquela Capitania, que ali fez crítica das festas, listou nomes das pessoas que entraram nas funções principais daquele agosto histórico, não omitindo nem os necessários comentários sobre algumas das apresentações, justificando as fascinantes representações: comédias, dramas, tragédias, óperas, danças, contradanças, bailes e até declamações poéticas (sonetos), talvez nunca mais vistos numa semana de Agosto daquela cálida Cuiabá

É mesmo curioso: em Mato Grosso, além do ouvidor D. Diogo de Toledo Lara Ordonhes ter escrito a primeira crítica teatral no Brasil, já na última década do século XVIII (1790), após assistir a pelo menos vinte peças, proporcionando “um momento ímpar na história da cultura brasileira”, na mesma ocasião, por estranho que pareça, os escravos negros e mulatos, alguns já considerados livres, exerceram o privilegiado papel de atores. A bem dizer, eram protagonistas da arte teatral, ensaiando e encenando clássicas peças teatrais, como ocorreu no dia 26 de agosto do ano citado de 1790, em Cuiabá, tendo como peça a Comédia Tamerlão na Pérsia, explicada em detalhes, inclusive de “pé de página”, pelo notável historiador e escritor, Carlos Gomes de Carvalho, no livro “No distante Oeste, a primeira crítica teatral no Brasil” (2004), digna de louvores à história do teatro no País, do qual transcrevo:

“Esta noite saiu a público comédia de Tamerlão na Pérsia, representada pelos crioulos. Quem ouvir falar neste nome dirá que foi função de negros, inculcando neste dito a ideia geral que justamente se tem que estes nunca fazem coisa perfeita e antes dão muito que rir e criticar. Porém não é assim a respeito de um certo número de crioulos que aqui há; bastava ver-se uma grande figura que eles têm; esta é um preto que há pouco se libertou, chamado Victoriano. Eles talvez sejam inimitáveis neste teatro nos papeis de caráter violento e ativo. Todos os mais companheiros são bons e já têm merecido aplausos nos anos passados. Eles, além da comédia, cantavam muitos recitados, árias e duetos que aprenderam com grande trabalho e como só faziam por curiosidade causaram muito gosto. Apresentaram-se bem asseados e as mais damas de roupas inteiras.

Quem lidou com eles e os ensaiou foi Francisco Dias Paes. Fez-lhes as despesas do teatro, luzes e música o major Gabriel e todos eles me vieram oferecer a sua comédia. Em um intervalo dela apareceu o ‘Camofeu’, a figura mais célebre por si e pela extravagância com que o tinha trajado o capitão Joaquim Xavier da Costa Vales, sobre o qual tem recaído o cuidado e o trabalho de adornar várias figuras de damas em todas as comédias e mais funções e depois de fazer várias celebreiras recitou o seu epílogo em meu elogio, respondendo-lhe a música, cantou a fazer morrer a todos com riso.

A comédia findou com um epílogo recitado por todas as figuras. Em conclusão, até a orquestra, que foi fora do teatro, foi a mais numerosa que até então ali apareceu, e logo não faltou quem oferecesse fazer as despesas para haver segunda representação por isso mesmo que todos os atores são uns pobrezinhos, que já tinham feito muito e despendido com as roupas e outras coisas.”

Vejo que da leitura da peça, existem alguns aspectos dignos de registro e análise. Em primeiro lugar, percebo que há a presença de um leitor e observador atento, inclusive crítico da leitura que fazia, que é justamente, segundo o historiador Carlos Gomes de Carvalho, a figura do experiente ouvidor D. Diogo de Toledo Lara Ordonhes, com razão chamado pai da primeira crítica teatral no Brasil, quando, exercendo funções de ouvidor geral do Brasil Colônia, para não dizer juiz Especial” esteve na remotíssima Vila do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, no longínquo ano de 1790, ocasião em que, além de assistir e dissecar a peça descrita, presenciou e observou outras várias, nem sempre comédias, tomado do mais forte entusiasmo e das mais vivas emoções, de que fez persuasivas e oportunas anotações críticas, certamente sem a verdadeira percepção de que ali estava escrevendo e construindo a primeira crítica teatral no Brasil, tendo como personagens, entre outros segmentos sociais, justamente os mais discriminados segmentos sociais dessas terras, os talentosos escravos negros de Mato Grosso, incluindo os inúmeros mulatos ou pardos, chamados “crioulos”, por certo ainda sem a forte acepção ideológica e objetivos políticos do atual Teatro Experimental do Negro; de todo modo, porém, mostrando que ali se antecipavam e se davam os primeiros passos do que se pode chamar posteriormente, “O teatro negro no Brasil”, com certo cheiro de povo ou teatro popular, fato histórico que, obviamente, não se consolidaria sem a viril e brava participação do extraordinário Abdias do Nascimento e uns poucos,  justificando resgate e merecidas recordações, sendo um bom texto ou  verdadeira referência a respeito, “O teatro do negro no Brasil e nos Estados Unidos”, da crítica de teatro do “Caderno 2” de O Estado de São Paulo, Mariângela Alves de Lima; enriquecendo também o assunto o importante livro “A cena em sombras” (1995), da  escritora  Leda Maria Martins.

Em segundo lugar, destaco o oportuno reconhecimento do ouvidor D. Diogo ao incontestável talento artístico dos personagens negros e seus descendentes, de um modo geral, sobretudo, como frisa o ouvidor, “um certo número de crioulos que aqui há”;  realçando  a figura de  “um preto que há pouco se libertou, chamado Victoriano”, decerto a “maior figura”, já reconhecida na literatura específica  do Brasil, dentre outros  ousados  personagens, merecedores de aplausos, a ponto do ouvidor  reconhecer que seriam (…) “inimitáveis neste teatro nos papeis de caráter violento e ativo”, momento em que, assim como ocorre no início da peça, creio ter se comportado um tanto desdenhoso, como era então comum se pensar dos negros, admitindo “que estes nunca fazem coisa perfeita”, antes “dão muito que rir e criticar”, agiriam “por curiosidade”, seriam “violentos”, decerto daí emergindo os comuns estereótipos do velho preconceito europeu contra o povo negro, configurando-se  em âmbito social e racial; notando-se que o escravo africano, por talentoso ou artista que fosse, não era considerado “gente” no sentido político, jurídico, teológico, dentre outros,  não passando mesmo de um semovente ou animal de carga, na venda ou na troca, podendo ser até objeto de inventário. Seu talento no teatro, portanto, por reconhecido que fosse, não tirar-lhe-ia o status deprimente de, como o da mãe, nascer  escravo, obrigado a seguir princípio do Direito Português, segundo o qual o “parto segue o ventre” (partus sectur ventre).

Em terceiro lugar, realço a acentuada curiosidade intelectual do ouvidor Diogo de Toledo, homem experiente, formação européia da mais reconhecida competência, digna de realce e admiração, forjada, portanto, na cultura de escol do velho mundo, tornando fato digno de realce sua singular curiosidade preocupada com a perfeição, comicidade, sentimentos nobres, sublimes, minúcias, detalhes das informações oferecidas, “mas, sobremodo”, como acentua o arguto Carlos Gomes, “as apropriadas e adequadas observações feitas descrevendo as várias representações, as qualidades dos atores, a adequação do cenário e das indumentárias, a capacidade dos “ensaiadores”,  a participação da população e até a crítica, propriamente dita, às peças e às suas “traduções”, tudo como prenúncio da primeira crítica teatral que se anunciava no mais recuado e insulado sertão mato-grossense dos finais do século XVIII, precisamente na última semana de agosto de que falei. Foi assim que se pôde destacar a grande quantidade de peças teatrais naqueles dias, como já disse, “cerca de vinte”, além dos bailes, cavalhadas, recitais e outros eventos culturais, como diz Carlos Carvalho, “na sempre cálida Cuiabá”, não podendo ser novidade por conseguinte, nas diversas noites encantadas da terra, a presença do erudito teatro europeu, com nomes como Voltaire, Metastásio, Moliére, Maffei, entre outros, de certo modo conectando o sertão mais longínquo das terras de Rondon, à distante Europa. Eis um pouco do porquê do nome e a glória de Diogo de Toledo Lara Ordonhes  na construção dessa história empolgante e indelével. Não tenho como não louvar, também, a feliz iniciativa do historiador e escritor Carlos Gomes de Carvalho, da Academia Mato-grossense de Letras, amigo de longa data, pelo tirocínio e oportuníssimo lançamento do livro citado, “No distante Oeste, a primeira crítica teatral no Brasil”, tirando do ineditismo e anonimato a valiosa primeira crítica de teatro no Brasil, simultaneamente mostrando –  certamente pela primeira vez na história do teatro no país – a ativa participação de escravos negros e mulatos como atores, protagonistas de uma peça de teatro, consoante está demonstrado, fato histórico por vezes visto como novidadeiro num país essencialmente escravista; contudo numa Capitania solitária, do mais ermo e isolado sertão, onde, por incrível que pareça, só durante o século XVIII, mais precisamente a partir de 1729, segundo explicita o autor epigrafado, são documentadas representações de, pelo menos, 80 peças na capitania”;  fato que também não poderia causar novidade na ainda mais recuada e distante Vila Bela, onde as manifestações culturais, incluindo  o teatro, são reconhecidas e destacadas a ponto de chamar a atenção do sociólogo Gilberto Freyre, motivando Carlos Gomes de Carvalho,  a escrever:

“Vila Bela seria uma pequena Lisboa nos trópicos, como já denominara Freyre, e cujos faustos não podiam deixar de refletir sobre outros núcleos da Capitania, particularmente da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.”

Esse encadeamento da ativa cultura regionalizada em Cuiabá e Vila Bela, de algum modo ligando e alcançando costumes e tradições da longínqua vida cultural portuguesa, foi fundamental naquele momento em que a Metrópole de Lisboa mais precisava e impunha ocupar o vasto espaço que se chamou Mato Grosso, fato que, certamente, ajudou a evitar que a Espanha o fizesse, ficando próxima a Bolívia e nos outros países sul-americanos. Quanto mais se pudesse imitar Portugal, principalmente em âmbito cultural, melhor era para os interventores ou representantes daquela Nação na remotíssima Capitania de Mato Grosso. Foi assim, sem a menor dúvida, que os portugueses e os brasileiros que os acompanhavam a Mato Grosso valeram-se essencialmente do teatro, aliado de outras artes, como a música e a dança, para recordar e rememorar a cativante e entusiástica cultura portuguesa, no mais pleno sertão do Centro-Oeste do Brasil, de qualquer modo mostrando o negro e o mulato praticando a arte teatral, construindo  a primeira crítica  teatral no Brasil .

 

(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado (MNU),  da Academia Goiana de Letras e da Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, Ubego, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM – [email protected])

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